Odeio o Mundo Agora! Maria Salles

Filosofia,literatura e outros...

Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

sábado, dezembro 29, 2007

Alinhar ao centro

O que é o Dionisíaco?

Reflexão a partir do Nascimento da Tragédia de Nietzsche



Maria Sales, nº 5529
Trabalho Final de Licenciatura em Filosofia
Orientado pela Professora Doutora Maria Filomena Molder
2007




Agradecimentos



Agradeço primeiramente aos meus professores que provocaram em mim uma enorme admiração e, ao mesmo tempo, um prolongado entusiasmo. Entre eles destaco: Abel Barros Baptista, Maria Filomena Molder e Mário Jorge Carvalho. Um agradecimento especial à professora Maria José Vaz Pinto, pelo amor e dedicação aos gregos e a forma carinhosa com que me recebeu. Agradeço a minha família, que da Bahia emana amor e suporta estoicamente as minhas idiossincrasias de viver para além do Atlântico. Ao Claudius que de lá torce por mim. Quero agradecer também aos amigos portugueses as preciosas ajudas que deles recebi, seja directa ou indirectamente para a possibilidade deste trabalho, como também ao longo dos cinco anos de duração do curso. Destaco Luís Graça, amigo em qualquer buraco do mundo, o coronel Graça com suas pilhérias e à Lecas na sua infinita generosidade, uma família que encontrei em Portugal. Clélia Andrade, pelos mais variados aspectos de uma amizade, preocupação, jantares, ofertas de livros e outros. Ao Dr. Vilela pela amizade e dedicatória de livros e artigos do pai. À Paula Costa, que entre muitas qualidades, destaco a doçura. A enorme paciência do Nélson Marques e interesse nos meus assuntos filosóficos sempre disposto a ouvir, aprender e dar opinião. À Joana Pupo pela cedência do seu velho portátil e cumplicidade nos temas dos nossos trabalhos. Ao Gastão Travado e a Sofia Maurício, pela paciência em resolver, sem tréguas, todos os meus problemas com o computador. Ao Fábio Serranito, com quem mantive uma relação intelectualmente, e não só, muito interessante ao longo do curso. Ao Hélder Telo de quem divergi, facto que me obrigou a organizar as ideias para a disputatio filosófica. Ao Gonçalo, meu colega, muito disponível na elaboração técnica da capa e não só. Ao João Cachopo, músico com interesses filosóficos similares ao meu. Por último, agradeço a energia selvagem, num misto de dedicação e soberania, que amo receber dos meus gatos: Homero, Bocage e Clarice, presentes em muitos dos momentos de realização deste trabalho. E também agradeço a sensação de embriaguez, desfrutada através das inúmeras sms anónimas que tenho recebido nestes últimos meses e que influenciaram muito na minha disposição anímica, numa mistura fértil de alegria, suspeita e afectividade.
Gostaria de ter feito muito mais da dádiva dos amigos. Nietzsche teve esta forte intuição sobre os gregos e escreve ainda muito jovem uma obra que deu muito que pensar, escrita com uma capacidade de concentração que se torna um desafio estudá-la. Aceitei o desafio e sinto que muito ganhei com o projecto, embora com o meu trabalho tenha ficado insatisfeita. Considero-o enquanto as primeiras noções para um estudo futuro aprofundado, que com tempo e espaço próprios possa investigar o trágico e o cómico com ferramentas arrojadas. Sendo este o meu primeiro trabalho académico de mais de vinte páginas, dou testemunho do embaraço, do perder-me e voltar a achar-me, dos vírus no computador, da inexperiência de não escrever as páginas das cotas e depois ter de voltar a procurá-las, das dores nos olhos e a pressão do tempo. Mas também do facto de, sendo naturalmente caótica, desfrutar da bênção de Nietzsche e Dioniso com algum socorro de Apolo.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

As Bacantes

A questão central deste drama está entre duas teses principais, por um lado, a dignidade do deus Dioniso e por outro, a não crença nesta divindade. Em seguida o culto estranho que o envolve com a presença de mulheres também estranhas da Lídia longínqua, lideradas por este pretenso deus. As mulheres estranhas também apresentavam actos muito estranhos, como ir para a montanha, domar feras e comer carne crua. O novo culto é contrastante com a normalidade do culto grego. E por se tratar de culto, não se trata de uma mera teoria, trata-se da existência e relação nesta existência, com novos atributos, a partida incómodos e que trazem consequências. É imperativo saber se a nova força vem ou não de um deus, pois certos elementos do culto são repugnantes aos olhos de um grego. Urge saber se se deve submeter a esta divindade ou não. As personagens tomam posições, e Penteu[1] resiste e não argumenta, enquanto Cadmo e Tirésias aderem, provocando espanto. Tiresias apela por uma argumentação oposta à atitude de Penteu.
O coro é formado por Bacantes convertidas. As mulheres da família de Penteu são chamadas pelo deus e estas entregam-se a um chamamento sobrenatural e partem para as montanhas para dedicarem-se a Dioniso e às suas actividades.
Penteu sendo o único resistente é arrastado por uma progressiva epifania. Embora o seu desejo seja o de manter a soberania. Manda os soldados atrás das Bacantes quando Dioniso intromete-se com ironia e di-lo para não lutar contra um deus. Esta ironia dionisíaca do próprio deus acompanha todo o drama. A ironia surge como um traço ainda não evidente do deus em outras peças. O deus convence o governante a fazer sacrifícios, pois ainda é possível resolver tudo a bem. Dioniso oferece-se para trazer as mulheres sem usar a força. Penteu começa a desconfiar e suspeita de uma armadilha. Mas Dioniso domina a situação perguntando se Penteu gostaria de ver também as Bacantes sentadas ao pé umas das outras. A ironia e zombaria associadas a um poder de articulação para incitar no outro a curiosidade que será fatal. O rei diz que sim e que daria ouro por isto. E Dioniso começa a preparar Penteu de modo cómico: veste-o com uma túnica de mulher, uma longa cabeleira, uma fita, um Tirso e uma pele mosqueada de veado. Penteu hesita e Dioniso o convence a ir disfarçado de mulher. Penteu entra no palácio e Dioniso regozija-se com o coro, pois o rei caíra na rede e fará Penteu pagar a sua insolência com a morte. E antes quer troçar do rei levando-o pela cidade vestido de mulher. Dioniso quer ser reconhecido enquanto deus terrível e também enquanto o mais doce.
[1] Penteu é o actual rei de Tebas, filho de uma irmã de Sémele, portanto primo do deus Dioniso. Dioniso vem a Tebas para revelar-se enquanto deus e tem como seu maior opositor o próprio primo, que enquanto político tem como preocupação fundamental a manutenção da ordem na cidade, duvidando do poder sobrenatural que se anuncia em manifestações estranhas. Dioniso não poupará o sofrimento dos opositores à sua condição de divindade e em frente ao palácio real de Tebas, ao lado do túmulo da mãe, aparece ao espectador vestido de chefe das Bacantes. Diz ser filho de Zeus e relata o trágico amor de Sémele, ao tempo que fala da sua vida errante em terras distantes, onde cultivou a dança e instituiu os seus mistérios. Dioniso tem uma relação problemática com o Olimpo. Se por um lado ele é filho do grande Zeus, por outro é um vagabundo. A Grécia será iniciada nos seus mistérios, o uso da pele de veado, do Tirso, um dardo coberto de hera, seus acessórios.
No Nascimento da Tragédia de Nietzsche o leitor é arrancado à soberania de uma visão do mundo mais ou menos estável, do desenrolar normal dos fenómenos causais, para ser lançado ao confronto assustador de uma realidade profunda e misteriosa – que tem o poder de arrebatar tudo quanto há, e que nada deixa por perpassar. Neste confronto tudo se transforma tomando novas colorações e simbologias não dominadas. Entre as artes, aquela que é responsável por esta força, por ser a mais espiritual de todas, é a música. A música não depende de nenhuma transformação de materiais, sustenta-se a si mesma e invade o ouvinte, transformando-o e, no caso dionisíaco, arrebatando-o em excesso. A música coloca o ouvinte em estado de embriaguez, subtraindo-o à sua individuação, para depô-lo na contemplação da verdade – que não se dá a ver sem mais, mas que a tragédia dá a ver, pois a música penetra no humano pelo seu carácter espiritual que aliada a palavra no drama encontra a sua temporalidade apreensível pela memória. A memória, para falar como Colli, dessedenta o homem, dá-lhe a vida, liberta-o da secura da morte. E neste recuperar do abismo do passado que o homem identifica-se com Dioniso. Trata-se das forças ocultas da natureza que exigem, para que sejam encontradas, uma transgressão, um salto. Salto que se encaminha para ser dado na tragédia alicerçado no mito trágico. A transgressão é crime contra a natureza mas, ao mesmo tempo, a única forma de lhe aceder. É porém, na compaixão que se apodera do sujeito que este se salva da descarga da dor primordial do mundo, tal como o pensamento e a palavra salvam da desgraça incontrolada da vontade inconsciente. Pela compaixão está-se junto da dor, a do herói que sofre ao experimentar a dor de Dioniso e que pela palavra socorre-se.
A razão consciente é uma pequena parte controlada do humano e nada pode fazer contra o poder musical dionisíaco, a não ser ganhar algum tempo no desenrolar do drama, pois que Apolo vem em socorro, para logo a seguir devolver o herói a Dioniso. Apolo é a consciência profunda da natureza, a consciência curativa, seja no sono, no sonho ou na arte que se dá enquanto símbolo de vidência. A tragédia grega que nasce sob o olhar de Nietzsche emerge da união destes dois impulsos, o apolíneo e o dionisíaco, onde Apolo, o deus solar – que cura, mas que também é terrível – se coloca à disposição de Dioniso, que é seu irmão, dado serem ambos filhos de Zeus. Giorgio Colli vê uma afinidade entre os deuses no que diz respeito ao jogo da inteligência e a perversão: O labirinto que Dédalo construiu com a ajuda de Dioniso para dominar o Minotauro, e, a forma oracular enigmática. A diferença que é relevante é o uso da palavra em Apolo. Colli acentua as identidades profundas de ambos os deuses. Nietzsche isola a oposição entre as divindades. Dioniso, tendo recebido os raios do pai, ainda em embrião, é socorrido por ele. Noutra versão do mito, Dioniso é identificado como sendo Zagreu, o indestrutível que, ainda que despedaçado pelos Titãs, emerge, em seu sofrimento de múltiplas individuações. Apolo é o deus terrível, que também é inseparável do conhecimento e da verdade. Deus da medida, solar, mas também da desmedida, sendo aquele que encaminha o herói a cometer insolência. Em ambas as divindades há uma conservação de ambiguidade.
Nietzsche encontrou na música de Wagner o suporte imaterial que, ao revelar o seu poder, possibilitou o seu regresso aos gregos desse momento especial de transição do culto dos mistérios para a articulação do pensamento filosófico. Os gregos que conheciam os horrores da existência. A tragédia, no seu melhor, concentra-se nas obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Este último torna-se o centro das zombarias de Aristófanes e da crítica de Nietzsche, por operar transformações racionais e obliterar os mistérios. Aristóteles foi o primeiro a teorizar sobre a tragédia, tornando-se incontornável para quem a queira estudar. Hierarquizou os géneros literários, reservando para a mesma o grau supremo da poesia. Mas não auscultou, como Nietzsche, o espírito da música, música que é uma disposição, uma harmonia emergente num salto que escapa à causalidade dada no limiar do fenómeno, no retirar da máscara, na vidência de um para lá da máscara. Aristóteles pensou a catharsis como uma purificação, em Nietzsche a consolação metafísica, não dissolve a tensão da polarização, pelo contrário, mantém-na facultando uma elevação do ponto de vista, num movimento heraclitiano e goethiano frente ao devir.

terça-feira, dezembro 25, 2007

A ambas as divindades artísticas, Apolo e Dioniso, está associada a nossa asserção de que existe no mundo grego uma monstruosa oposição, no que diz respeito à origem e aos objectivos, entre a arte do escultor, a apolínea, e a arte da música isenta de imagens, como sendo a de Dioniso; ambos os impulsos, tão distintos, caminham lado a lado, na maioria dos casos em divergência aberta um com o outro e provocando-se para criar novos nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra comum «arte» só aparentemente supera; até que finalmente através de um miraculoso acto metafísico da «vontade» helénica, eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática.

Friedrich Nietzsche



Que sirva de ensinamento a essas sérias criaturas o facto de eu estar convicto da arte como sendo a missão superior e a actividade propriamente metafísica desta vida …

Friedrich Nietzsche



…todo o artista é um «imitador», nomeadamente artista apolíneo do sonho ou artista dionisíaco do êxtase ou finalmente – como por exemplo na tragédia grega — em simultâneo artista do êxtase e do sonho.

Friedrich Nietzsche



…os Gregos, enquanto não tivermos resposta para a pergunta «o que é o dionisíaco?», continuam totalmente por conhecer, permanecendo inimagináveis.

Friedrich Nietzsche

sexta-feira, novembro 23, 2007

O Caracol em busca da casca perdida

Para um caracol que conheço e que já gosto muito






Ao longo de um rio pedregoso vivia um caracol sem baba, porém, de barba comprida. Passava muito do seu tempo a olhar a paisagem e a pensar na natureza das coisas, enquanto saboreava deliciosas e suculentas folhas verdes que brotavam do solo fértil. Pensava tanto que a barba, para além de comprida, já estava branca.

Gostava muito das hortaliças frescas que cresciam à beira do rio. Logo após uma boa refeição deixava, temporariamente, a sua casca para se refrescar e lavar a barba. Este era um dos melhores momentos do dia! Dava alguns mergulhos para refrescar o pensamento e aproveitar o bom tempo, pois o Inverno não tardaria.








Certo dia, atraído pela movimentação dos coloridos insectos, deixou-se levar pela correnteza já fria, ao encontro de sítios desconhecidos. A aventura foi tão inesperada que o deixou desorientado.

A preocupação não durou muito, porque o lugar onde chegou era muito bonito, apesar de nebuloso, e o incentivou a um curioso passeio. Estava distante de tudo o que conhecia e tinha frio. Depois de muito andar, lembrou-se da sua casca. Deveria encontrá-la com urgência, pois fazia-se noite e não gostaria de dormir desabrigado.

As noites nos bosques são frias e húmidas.

Decidiu procurar a casca, mas também pensava em encontrar um sítio seco e protegido para passar a noite, caso não encontrasse a sua pequena casa. Para sua surpresa o que encontrou foi um caracol muito grande! Assustou-se! Era uma caracoleta!

Uma caracoleta é bem maior que um caracol. Como se a superioridade do seu tamanho não bastasse, a caracoleta olhou o pequeno caracol com desprezo. Julgara estar em presença de uma lesma e sentiu nojo daquele ser insignificante e amolecido pelo desânimo.





O pequeno caracol sem casca desculpou o insulto da caracoleta. O seu equívoco poderia derivar do facto de há muito não ter contacto com um caracol.

Depois de trocar algumas impressões, a caracoleta compreendeu estar diante de um semelhante. Então, resolveu ajudá-lo a recuperar a sua casca perdida. O bosque já estava escuro, a pouca luz existente vinha dos raios de luar que passavam por entre as folhas das árvores.

Andaram muito e, quando já pensavam em desistir, surpreenderam-se com muitas cascas arrumadas, umas ao lado das outras. Olharam-se admirados, andando por entre as cascas estacionadas, quando ouviram sons e avistaram luzes de festa numa determinada direcção. Era uma festa de caracóis!


Eles dançavam e divertiam-se para comemorar a época das chuvas. As chuvas deixam o solo fresco para fazer crescer plantas verdes e os caracóis até saem da terra de contentes!

A alegria, de algum modo, abrange todas as criaturas, ainda que nem todas possam captar o seu significado. Nestes momentos, um caracol sabe como é bom estar vivo e ser um caracol.

Esqueceram o problema da casca perdida e resolveram juntar-se, partilhando a dança e os festejos com a comunidade de caracóis. Na festa, o caracol e a caracoleta puderam conversar e saber um pouco mais um do outro.







A festa estava animada, os caracóis eram simpáticos, mas os dois reflectiram que era necessário pensar na casca perdida e encontrar uma solução.

Quando há amizade nasce a generosidade e nem os caracóis ficam incólumes. Agora que eram amigos, a caracoleta convidou o caracol a habitar a sua casca. De modo que, quando um descansava dentro da casa, o outro estava por perto, do lado de fora. Estavam alegres com a partilha alternada.

Até que, de facto, chegaram as chuvas. Para além de deixarem as plantas bem verdes, as chuvas serviam também para unir ainda mais os amigos dentro da mesma casca, ao mesmo tempo.





O caracol e a caracoleta compreenderam que ter amigos é mais importante que uma simples casca!

domingo, novembro 18, 2007

Versos Íntimos
Augusto dos Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Pau d'Arco, 1902.

sábado, novembro 17, 2007




Dia mundial da Filosofia 2005.

sábado, novembro 10, 2007

Luciana, minha prima e afilhada com Guiga, protagonista de "Guiga de pés velozes".
Luiz e Sandra

Sandra, Fafá, eu e Itana, as manas em Sintra, 2005.

sexta-feira, novembro 09, 2007

Luiz Osório casado com a minha irmã Sandra há 34 anos e 10 anos de namoro.

domingo, outubro 28, 2007

Cassandra, profetiza de Apolo

Ao perceber a imobilidade e silêncio de Cassandra na fascinante tragédia de Ésquilo Agamémnon, o coro volta-se para um intensa comunicação com a profetiza. Primeiro há que esclarecer o papel de Cassandra no mito: Apolo, o deus que atira ao longe, o deus da espada de ouro, do arco de prata, tem para além de tantos outros epítetos, já sabemos, também o de Lóxias, o oblíquo. Ora, Apolo enamorou-se de Cassandra, princesa de Tróia, filha de Príamo, e esta "sentiu-se obrigada" a retribuir ao amor do deus, tendo, por isto, feito juras de entrega afectiva. Foi a maneira mais rápida de se livrar das perseguições do deus poderoso, que, de facto, apaixonado podia ser violento. Quando os deuses se apaixonam o fazem na procriação, querem imediatamente conceber um filho. Apolo tornou Cassandra sua profetiza e dotou-a dos dons da profecia. Mas Cassandra não cumpriu a sua palavra de entregar-se a Apolo e este, ao contrário do que qualquer pessoa faria, não lhe retirou o dom da profecia, antes cuspiu-lhe na boca, retirando-lhe a credibilidade. Doravante, Cassandra vaticinaria, mas ninguém acreditaria nela, embora falasse uma língua compreensível.
O coro presta atenção à Cassandra e discorre sobre sua apreensão, seu terror, "a alma em sobressalto que entoa sem lira um canto lúgubre, das Fúrias vingadoras, do coração a palpitar frenético, quase saltando, delirantemente, no peito onde há o instinto da justiça e o dom divino dos presságios certos"1120 a 1150. O coro ausculta, com alguma precisão o coração apavorado de Cassandra, que no drama, tem uma presença muito forte. O canto divino sem lira é o canto da Musa ou Musas. O pavor de Cassandra engendra um silêncio agónico, tumultuado e convulsivo, como é próprio do prelúdio profético, a iminência da transitividade do ponto de vista que revelará uma identidade diacrónica, com revelações súbitas, não antecipáveis para uma pessoa a quem não tenha sido concedida o dom profético.
É Dioniso o principal homenageado, pois Melpomene, a Musa trágica revela estreita relação com o deus. Entre os três tragediógrafos é Ésquilo quem mantém relação estreita com Dioniso, seja no delírio a ele inerente, seja nos silêncios acentuados, como o da sentinela, a partir do verso 26, e o de Cassandra em seguida aos versos 1191 e 1200, opondo-se às ordens de Clitemnestra. E o silêncio do coro, depois de 1547, antes do grito de Agamémnon. Há silêncios de completude, mas há silêncios que são apreensões, antecipações de algo, no próprio ou do outro que não se conhece, e funda uma profundidade no drama trágico, profundidade temerosa. O silêncio dá-se no calar-se, uma suspensão da voz que gera a mudez, que é um momento desprovido de significante, palavra sonora: O silêncio de Cassandra é o real efectivo que traz consigo algo de sombrio e perigoso e o mundo fenoménico já não se sustenta. É a emergência de um subsolo que traz uma verdade ainda não vivida ainda não auscultada que já promete eficácia tumultuada, pois que já começa por levantar seu véu de escondimento. O anúncio disto é esta própria mudez, na sua qualidade que anuncia terror e perturba o coro, pois este extravasa o âmbito do humano e das Musas próprias do coro.
Antes, as musas eram associadas à pureza. São nestes momentos que o texto cresce e é Nietzsche em O Nascimento da Tragédia que vai bem longe ao afirmar que o dionisíaco é a chave da genialidade da tragédia grega. As musas partem dos cantos apolíneos em busca do obscuro Dioniso. Os momentos de Cassandra, diante do palácio, começam a ser delirantes e convulsivos.
Clitemnestra volta do palácio na intenção de fazer Cassandra entrar, e chama-a, mas Cassandra permanece em silêncio. O Corifeu tenta acordar a profetiza, interpretando a sua atitude como a de "um animal selvagem recém cativo, inconformado com as amarras" 1215. Clitemnestra conclui pelo seu desvario e fica sem paciência, voltando ao palácio.
Cassandra, então, desce do carro e em soluços, fala em tons alternados de lástima e exaltação, como se estivesse em transe. Apolo e Dioniso partilhando um grito e uma mesma honra, e este binómio, diz Nietzsche, é um autêntico produto da tragédia. A evidência de Cassandra é incontornável com seus gritos que são cantos e seu canto em forma de grito. Começa por produzir um canto de que não se percebe de modulação de mau augúrio em medidas agudas, 1230-1490. É neste sentido, o do luto, que a música e o seu espírito é lúgubre, sinistro que envolve o herói arrebatando-o à normalidade.
Cassandra adquire um tom sinistro, e o Corifeu descodifica que ela adivinha os próprios males. Invoca Apolo, que, segundo julga o Corifeu, ser um deus que nada tem a ver com o pranto e a dor. Mais tem, e Cassandra sabe do amor de Apolo por ela e do seu ódio, por não ser correspondido, tornando-se no seu destruidor. Nesta peça, o amor de Apolo é um amor violento numa manifestação às avessas, ao entregar Cassandra a Dioniso.
Cassandra acede aos antepassados da família real, toda a desgraça de Atreu e Tiestes. O delírio dionisíaco se intensifica e o coro deixa de percebê-la. Cassandra tem a visão do assassinato de Agamémnon, vê o bando de Erínias, as entidades vingadoras de crimes consanguíneos. Em 1290, Cassandra sabe que vai morrer. O coro ouve de Cassandra um canto desencantado, fúnebre e compara-a ao rouxinol da lenda de Procné a chorar o filho Ítis, morto pela mãe. E as lamentações proféticas seguem, ora com suavidade, ora com desespero, entre gritos e convulsões. Nos momentos fortes do transe a voz da profetiza alcança o grotesco, o animalesco.
Sai da lamentação de si própria e relembra as trágicas bodas de Paris e Helena, a desgraça de todo um povo! Evoca os rios do Hades, Cócito e Aqueronte, onde em breve, sabe, irá cantar as profecias. Visão contraposta ao rio Escamandro, onde brincou em criança.
Nesse momento o coro se apercebe que Cassandra vaticina sobre si própria, e a ira de Apolo se manifesta em ódio tão violento quanto a entrega às musas do seu companheiro Dioniso que a levará a morte, não sem o sofrimento da profetiza, pois esta vê a sua própria queda 1334. O coro fala de um possível espírito maligno a se apoderar da prisioneira, constrangendo-a a derramar lágrimas em confronto com a iminente morte 1340. Ao farejar homicídios antigos, intui a sua própria morte. Vê as Fúrias, num canto de morte, cantar as primeiras mortes da família. Para dizer que estará a dizer correctamente, usa a metáfora do arqueiro, que acerta o alvo, alusão a Apolo.
Cassandra pede a confirmação ao Corifeu sobre a história da família e o Corifeu fica impressionado com a precisão 1370. Então Cassandra confessa o seu dom de profetiza, dom de Apolo, pelo seu ardente amor por ela. O Corifeu quis saber se os ritos amorosos foram praticados e Cassandra diz que prometeu e não cumpriu. E que então caiu em descrédito. Ela inclusive vaticinou a queda de Tróia, também relatado na Eneida, de Virgílio.
Subitamente, Cassandra volta a agitar-se, volta a ser dominada pelo delírio e vê nitidamente o modo como Agamémnon morrerá, depois da visão das crianças de Tiestes mortas 1395. Cassandra já não se preocupa se lhe dão crédito, pois sabe que no cume dos delírios não a compreendem 1420. E diz ao Corifeu que este a reconhecerá, dentro de instantes, profetiza, pois também ela vai morrer. O Corifeu já tinha compreendido a parte do banquete de Tiestes a comer os seus próprios filhos, mas sobre o resto tem dúvidas 1430. E a confirmação da morte de Agamémnon obtém-se em 1434.
O Corifeu encontra-se um tanto perdido, pois a partir da sua posição apolínea não compreende planos criminosos. Cassandra diz falar bem a língua helénica e o Corifeu responde que também a Pitonisa, mas ninguém a compreende1443. Segundo Loraux, Ortos é relativo à correcção do movimento apolíneo, sob uma música direita e orthos é o grito alto, como o grito de guerra que mete medo ao adversário. Apolo se aproxima dos gritos do luto, Iakkos, também relativo a um verbo que apresenta Dioniso nos mistérios de Elêusis. Para os gregos Iakkos apresenta duas características: o nome era evocado de modo alto e em repetição infinita, promovendo deste modo um aumento na disposição musical. Os gregos tinham presente, como já disse, que Dioniso ainda embrião recebeu a luminosidade de Zeus em toda a sua potencialidade, quando ainda se encontrava na barriga da mãe.
No grito Evohé, um grito báquico, Apolo transparece como uma visão imediata de Dioniso, como em Sófocles no stasimon de Édipo rei. Põe em evidência duas correntes fundamentais: a imitação do mundo das imagens e a imitação do mundo da música, ganhando preponderância, o segundo, Cassandra vê fogo a avançar sobre ela e decide partir o ceptro de profetiza e se livrar das insígnias de Apolo, fitas, que a distinguia 1455. E diz claramente ser Apolo o seu maior inimigo, por amá-la é o causador da sua morte. Mata aquela que ele próprio inspirou, depois de tantas provações sofridas 1468. Cassandra é a carpideira de Apolo manifestando uma estrutural impossibilidade de comunicação, embora num longo diálogo, engendrando uma reflexão, segundo Loraux, meta-teatral. Schiller discorre sobre o carácter reflexivo da poesia sentimental que aponta para uma idealidade no infinito que não é, de todo em todo alcançada. Cassandra é uma profetiza virgem e apolínea incapaz do preceito délfico "Conhecer-se a si próprio", onde a pergunta inquietante é porque gemer em nome de Lóxias? Este momento é o de um Apolo que mete medo.
No mesmo seguimento profético, vê Orestes chegando para vingar o seu amado pai 1472. E aceita o seu destino com firmeza 1490. Pois sabe que lutas não a salvará 1500. Na primeira tentativa de entrar no palácio, recua com expressão de horror, pois sente o cheiro de sangue que de lá vem. O Corifeu diz ser dos sacrifícios, e lembra-lhe da existência de incensos sírios. E outra vez encaminha-se para o palácio e torna a recuar e pede aos anciãos que sejam testemunhas do que se vai passar, referindo-se a sua morte e a de Agamémnon. Pede ao Sol que dê destino igual aos inimigos, assassinos de uma escrava, presa fácil. Lamenta-se da sorte dos mortais, triste sorte 1525.
Neste momento o coro reflecte a situação humana, o facto de não estar em situação de poder gabar-se de haver destino isento de tristezas 1445. Ouve-se o grito de morte de Agamémnon e a métrica dos versos sofre um aumento, enquanto o Corifeu pede silêncio. E ouve-se Agamémnon queixar-se de novo ferimento.
O coro sabe da morte consumada e começa a deliberar sobre o que fazer e as opiniões são diversas. E nesta equivocidade uns dizem da impossibilidade de poder afirmar, apenas por ouvir gritos, a morte de alguém, o que impossibilita uma decisão.
Abrem-se as portas do palácio com a iminência dos anciãos entrarem. Vêem-se os corpos do rei e da princesa de Tróia, e Clitemnestra tem as mãos e o rosto manchados de sangue. Clitemnestra se ufana de seus planos e seus actos, dizendo ser esta a sua missão 1590. Emaranhou o rei numa rede e depois o golpeou duas vezes. No terceiro golpe, o rei já estava morto, mas o fez em homenagem a Zeus.
O Corifeu espanta-se com a arrogância de Clitemnestra, apontando-a num acto injusto. O coro indaga sobre que erva má terá ela ingerido para pensar ter assassinado o marido justamente, 1625-1630. É ameaçada de banição, exílio. Aos olhos do coro Clitemnestra é uma desvairada. Clitemnestra diz que sua justiça é vingar a sua própria filha. A morte é em nome do amor que nutria pela adorável Ifigénia. E diz também ter vingado as crianças inocentes, irmãs de Egisto, mortas por Atreu.
O coro se preocupa com o funeral de Agamémnon, mas Clitemnestra afasta-o dizendo-lhe que tais cerimónias não lhe compete. Egisto aparece e lembra a desgraça dos irmãos pequenos, pois ele foi o único que se salvou, e diz ter sido um agente da justiça ao planear a morte do primo 1880. O coro fala do ódio do povo, que Egisto não escapará. Egisto responde mostrando-lhe o lugar inferior e a possível tortura de fome e prisões que os inferiores estão sujeitos 1885. O Corifeu acusa-o na sua covardia de apenas tramar e não consumar o acto 1915. Egisto admite que era muito mais fácil ser Clitemnestra a fazê-lo, pois ele era suspeito.
Egisto cansa-se e põe os soldados contra os anciãos. Clitemnestra intervém dizendo que ambos terão o poder suficiente para por em ordem a situação sem ter que dar ouvidos aos velhos e entram para o palácio.
É Aristóteles o primeiro a estruturar o estudo da tragédia e da poesia em geral. E um dos momentos do seu pensamento que aqui nos importa directamente é que a tragédia deve imitar casos que suscitem o terror e a piedade, pois tal é o próprio fim da tragédia. A piedade tem lugar naquele que é infeliz sem o merecer, mas não pode ser em homens muito bons que passem da boa para a má fortuna, pois Agamémnon não era assim tão bom. Mas de facto tinha a seu favor o facto de ter vencido a guerra, quando era o chefe de expedição e o próprio facto de ter sido o líder revelava o seu poderio militar. Neste sentido, ele merecia ser bem recebido, e a sua morte no regresso, causa terror e piedade, comete a insolência em pisar tapetes reservados aos deuses, a hubris.

domingo, setembro 16, 2007

Acho que fui a última pessoa a entrar na era dos SMS. Fui bombardeada por mensagens, em agosto, por pessoas aparentemente desconhecidas. Também podem muito bem ser a mesma pessoa desdobrada em cartões diferentes. Foi um verão picante de comunicações kafkianas, às vezes com algum sentido de humor e amorosas. Acho que nunca saberei de quem se trata embora tivessem se identificado com nome e profissão. O que nunca foi dito é como ficaram a saber o meu número, o que me faz suspeitar ser uma pessoa muito querida e próxima do coração. Mistério! Sinto-me incompetente, devo contratar Sherlock Holmes. Enverguei um flair play mal amanhado e mandei muitos SMS de volta, consegui um grande stress e agora sei menos do que sabia sobre muitos assuntos. Inexperiente em SMS deram-me um grande olé, e já não posso ver um telemóvel a frente. Não sei porque, não sei como provar, mas desconfio muito de uma pessoa, por sinal gosto muito dela, mas não se aproxima de mim nos parâmetros normais o que insufla minha incapacidade para resolver enigmas. Que sorte a minha!

domingo, setembro 09, 2007

Mais um domingo na festa do Avante, como nos últimos anos, a acompanhar minha amiga comunista, Clélia. Uma fartura à chegada, o dircurso a começar, mas continuamos a andar e a ouvi-lo aos bocados entre um e outro interesse. Jantamos na barraca do PT, Partido Trabalhador brasileiro, com direito à fotografia do Lula, tão bem produzida que já parece um magnata. Sim Senhor Presidente, já faz uma boa figura no retrato! Perdeu o aspecto de proletariado, que também tinha o seu lugar. Comemos uma feijoada brasileira, diga-se carioca, pois cada Estado tem a sua e na Bahia é com feijão mulato. Estava boa e era mesmo o que eu senti merecer! Comprei umas sandálias marroquinas que vi o momento de o marroquino me bater! O pé direito era excelente e esquerdo tinha alças folgadas, quis misturar os pares e ele não gostou muito, mas acabei fazendo o que quis, pois ele não tinha um feitio pior que o meu. Ele lá teve que fechar os olhos. Maneira artesanal de fazer sandálias dá nisto, o público europeu exigente vê defeitos! A seguir comprei chá de mirtilo, passeamos, vimos livros , um pouco de música ...e minha amiga continua a não entender a minha falta de consistência política, enfim tenho olhos para a totalidade, tenho sede de absoluto, partidos é como comer um pedaço de bolo e dizer que foi a festa! Mas tenho que admitir que em certos momentos um partido, uma tendência pode ser uma defesa pessoal. Certa vez, consumindo-me entre não querer ser aceite para uma determinada situação e não saber o que fazer, encontrei a solução vestindo uma t-shirt do Che, santo remédio, fui excluída sem delongas!

domingo, agosto 26, 2007

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.

Luis de Camões

quinta-feira, agosto 23, 2007

Salvador, maio de 1980

terça-feira, agosto 21, 2007

quinta-feira, agosto 16, 2007

INSCRIÇÃO

Sofia de Mello Breyner Andresen

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

terça-feira, agosto 14, 2007

PENSAR POR SI PRÓPRIO

O que quer Kant dizer com isto?

Kant preocupa-se com os princípios da perfeição lógica do pensamento ou os princípios de exclusão da possibilidade de erro. A perfeição lógica do pensamento ainda não traz o conhecimento completo, mas visa alcançar uma perspectiva em que as regras de sua própria construção não sejam adulteradas. Portanto isto inclui não ultrapassar a própria perspectiva, ou seja nada fixar quando não há condições para tal. Deste modo tal perspectiva deverá permanecer aberta, o que os gregos diriam: uma epoché.
O pensar deve ser esclarecido, alargado e consequente. Pensar esclarecido é pensar por si próprio, o pensar alargado passa pelo transporte ao pensamento do outro. O pensar consequente é ter em atenção as possíveis derivações e inferências num juízo. Um juízo deve ser feito na verificação do seu fundamento,portanto o importar um juízo alheio deve acompanhar-se da verificação do seu fundamento, e se ele não for importado também não significa que seja já fundamentado. A emissão de um juízo deve ser acompanhada de um fundamento que garanta a sua apodicticidade, ou seja que esteja excluída a possibilidade de ser de outro modo, estar na posse do estado de coisas a que ele é relativo.
Quem é o outro do juízo no pensar alargado? É o outro modo de pensar que pode ser alheio ou do próprio. Uma explicitação de uma implicação do primeiro. Trata-se da consideração das alternativas, ou seja estar aberto a alternativas possíveis. A perspectiva alheia interessa como possível perspectiva própria. Então a verificação do fundamento não é perfeita se não estiver sujeita às concorrentes. A ponderação para ser crítica tem que ter em consideração a totalidade das alternativas, tem de estar nas fronteiras de si mesmo, a farejar a possibilidade de ser de outro modo.
Será possível emitir algum juízo?
Estamos na efectividade de juízos provisórios!

(migalhas das aulas de Ontologia)

domingo, agosto 12, 2007

GUIGA DE "PÉS VELOZES"
Para Guilherme Reis Falcão

Sem dúvida, Guiga era o menino mais rápido da escola, pois chegava sempre em primeiro lugar nas brincadeiras de correr. Guardava com orgulho os troféus e medalhas de campeão conquistados nos torneios . Títulos conseguidos com empenho e habilidade!

Era muito rápido em tudo ! Só andava a correr e chegava cedo a todos os sítios. Era também o primeiro a acabar os trabalhos da escola. Sabe-se lá a qualidade com que os terminava!

Os fins-de-semana eram passados no campo e adorava saltar ao redor das árvores, ao sabor dos ventos, pois sabia tirar partido das correntes de ar. Guiga competia com as rajadas mais fortes! Também corria com outras crianças à volta do campo de futebol, enquanto se aqueciam para uma partida. Durante o jogo era sempre o primeiro a marcar golos. Era assim o mais importante do clube e, portanto, um atleta muito disputado.



Mas a sorte que costumava estar do seu lado um dia escapou-lhe e Guiga teve de enfrentar a dureza do momento. Durante uma jogada arriscada, confrontou-se com um adversário e magoou um calcanhar. O jogo ainda estava no princípio, mas teve de ser interrompido. Que azar! Logo na primeira eliminatória do torneio!

Guiga que nunca tinha andado devagar na sua vida, foi obrigado a voltar para a casa lentamente, o que foi muito difícil . Andar devagar era demasiado monótono para uma criança com uma energia como a sua. Ele era tão possante que até Homero o teria confundido com Aquiles, o herói grego, pois parecia uma estrela, ao correr pela planície em busca de Heitor, o príncipe troiano.


O caminho, que sempre foi curto para Guiga, agora parecia muito comprido e difícil de percorrer. .. e tão cedo não poderia voltar a jogar. Era necessário saber viver com a nova situação. Por um instante, Guiga ficou pensativo a olhar a Natureza. Começou a sentir a vida exuberante em toda a parte! Desfrutava agora de um prazer diferente, ao mesmo tempo profundo e intenso, e respirava calmamente para encontrar o modo de conviver com a novidade. A surpresa fez-lhe perder a cor, tornando-o quase transparente e difícil de ser visualizado.



O sapo mais colorido olhou para aquele menino quase incolor e começou a coaxar com insistência. Só deixou de fazer barulhos de sapo quando se apercebeu que a falta de cor do Guiga supunha um misto de dor e confusão pelo encontro com tantos bichos. De modo que o sapo colorido, movido por um sentimento súbito de simpatia e solidariedade, ofereceu a Guiga um exemplar do mais belo livro de histórias dos sapos da Amazónia. O sapo colorido tinha justamente acabado de reeditar esta celebridade para que todas as rãs, sapos e pererecas tivessem a rica instrução da verdade da origem dos sapos.



Guiga, agradecido, sem perceber muito bem o que se passava à sua volta, e com dificuldade para caminhar, via que tudo aquilo era muito bonito e importante. Era delicioso desdobrir o mundo, ainda que pudesse encontrar sapos ora enfezados, ora generosos…

Admirava-se com as acrobacias das borboletas, os variados cheiros das flores, os diferentes tamanhos dos grilos e tantas cores de sapos! E agora de calcanhar magoado, um pequeno Aquiles amuado, iria se entregar à leitura para descobrir muito sobre o seu novo amigo sapo ou simplesmente mergulhar nos seus mistérios.


Apercebeu-se de que a beleza tinha várias formas e de que era preciso tempo para apreciá-la. Descobrira o privilégio de saber observar. E isto parecia bem melhor do que ser o mais rápido. Sabia que deveria conhecer tudo isto em pormenor. Talvez conseguisse captar muitas das evoluções mais expressivas dos seres. Queria descobrir as misteriosas transformações de todas as coisas.

Ler e pensar poderiam ser os mais seguros passos para compreender… Que bela prenda e que belo aviso o sapo colorido lhe dera! Pensou que, se queria apreciar a beleza das flores,dos bichos, das pedras…já não poderia andar tão depressa. Cada ser é muito mais do que aquilo que podemos julgar. Decidiu que, daquele momento em diante, só correria quando fosse necessário. Queria, desde já, estar diante da possibilidade de uma nova descoberta.



Dava início a um tempo de recolhimento, de abrir o coração aos outros e repensar o modo de viver a vida. E foi dessa maneira nova de viver que Guiga recuperou a sua cor.
IMPRESSÃO

à beira
o desespero encanta

insónia
tentações voláteis

ao lado
a angústia pisa

um certo
sonho flautista

ao centro
a solidão embala

saudade do artista

de dentro
a esperança imprime

um sopro
ou ânsia

um poema
um beijo

o ser amado

não vá o tempo
escoar




domingo, agosto 05, 2007

OS ACROBATAS

Vinícius de Moraes

Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.

Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima
Mais longe que tudo
além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!

Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
subamos!

Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta

Como no espasmo

E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus

Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos
E morremos
Morremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.

Namur, 1980
Enamoramento

a fulano ou sicrano, ou melhor: a beltrano

Abraçavam-se quase imobilizados de um desejo concentrado no membro rijo mesmo à beira do sexo dela, imobilidade que potencializava a sexualidade transbordante por uma longa espera. A temporalidade do momento emanava uma cintilação de cura profunda. Uma harmonia se expandia daqueles corpos nus, muito unidos, suados, amados numa entrega de uma paixão alicerçada por um amor que define um verdadeiro encontro. Depois do clímax da entrega dos corpos permaneceram unidos e a harmonia tomava nova densidade saltando para fora do sonho e inundava a escuridão do quarto. Era uma nova força a que recebera e parecia que veio para sempre. Ela sorriu de alegria e tornou a abraçar o seu gato que recebia, deliciado, toda aquela energia benfazeja. Tinha sonhado com ele e a atmosfera que trazia para a realidade era de reconciliação consigo própria permitindo a continuação de um sonho reparador, feliz, sempre abraçada ao seu gato que com ela dorme todas as noites. A atmosfera amorosa acompanhou-a durante alguns dias de modo notório e reparador. As próximas vezes que se viram tinham um namoro tácito, isento de palavras e muito carinho doado em momentos dispensados ao toque da visualização um do outro. Moíam-se debaixo do calor de um sol ardente numa esplanada pouco protegida, mas que lhes permitia uma intimidade demorada para se olharem sempre que quisessem, ainda que sob um pudor de não mostrar ao outro de modo bruto a evidência do interesse. E a ingenuidade do disfarce, que nada esconde, servia-lhes para saborear a presença do outro de forma requintada e ir sentindo as transformações que no íntimo se vai operando quando o amor quer deixar de ser incerto e pede uma morada absoluta, em liberdade. Ela sentia-se no vórtice de um jorro afectivo, e senhora de si olhava-o com um pouco mais de desprendimento, queria colaborar com uma decisão encorajante, para que ele pudesse captar o progresso de uma estabilidade desejada. Nesta atmosfera aconchegante ambos sentiam-se tranquilos e receptivos e já apontava no horizonte emocional de ambos uma proximidade que em breve tomaria novos contornos. Ele já se preparava para partir, não sem dar a ela o tempo de preparação para algo de eficaz entre ambos. Ela acompanhava os movimentos dele e dava-se conta que estavam prestes a se olharem de modo muito verdadeiro, e de facto olharam-se e ele mostrou-se muito sincero, pois nos seus olhos desta vez não mostrava barreiras e chegava-lhe como um convite. Ela atrapalhou-se com tamanho brilho na emoção, que ofuscando-a revelou-a uma timidez que os impediram de seguir um rumo tão desejado e tão merecido.

sábado, agosto 04, 2007

IN HERBERTO HELDER
OU O POEMA CONTÍNUO

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

...

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima esta imagem de água interna.
-Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
Imaginar com ferocidade.
porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.
...

sexta-feira, agosto 03, 2007

O que fazer quando a vida empurra um indivíduo a funcionar no subliminar? Ter que traduzir o dito com o não dito é uma tarefa magnânima e arriscada! Até que ponto a poderosa imaginação alcança o momento alargado do verdadeiro local do outro? Vencer com sabedoria o egoísmo lógico alertado por Kant. O risco de evasão e confusão é enorme, mas também sem ela a vida ficaria encurralada em horizontes muito restritos. Viver é correr riscos, saber o que se quer e encontrar a audacia dos corajosos, ou então morrer na praia...
O Coro enquanto momento inaugural da tragédia, dança e canto em honra a Dioniso

A tragédia era inicialmente dança e canto coral em honra a Dioniso. Era executada por cantores que se vestiam ou mascaravam com peles de animais e se identificavam como seres divinos, tendo sua forma primitiva muito próxima da lírica que se desenvolve em géneros distintos pelo modo como assimila os mitos encontrados na poesia épica. O drama funda-se no tipo de transformação em que o coro representa as pessoas do mito, convertendo-se em actor. A tragédia, distanciando-se da lírica, estava ligada a uma única celebração religiosa, o culto a Dioniso e a representação do mito deu-se em forma dramática, que pouco a pouco foi se distanciando desta unilateralidade de culto.
Nietzsche propõe que olhemos para o cerne desse coro, sua origem religiosa. Pois a tradição diz-lhe de modo categórico que a tragédia surgiu do coro trágico e que era na origem apenas coro, e então devemos olhar para o cerne desse coro enquanto drama primordial. Por um lado, cita Schlegel com a interpretação de ser o coro a essência e o sumário de espectadores, o coro enquanto o espectador ideal, mas Nietzsche ressalta a dificuldade de encontrar analogias entre o público de teatro e o coro trágico. Decide-se pela visão de Schiller, uma muralha viva que protege o acontecimento em cena de qualquer interpretação que mine uma elevada forma de arte. Os sátiros, membros do coro, eram seres metamorfoseados e discípulos fiéis do seu deus, Dioniso.
Para dar início a sua argumentação afirma que o verdadeiro espectador teria que ter a consciência permanente de que diante de si o que há é uma obra de arte, contra a ideia de que o coro trágico grego vê-se na obrigação de ver figuras reais em palco, considerando o deus em cena não menos real que a si próprio. Então a expressão de Schlegel sugere, contrariamente ao que Nietzsche pensa, que o mundo cénico produzisse um efeito não estético, mas sim físico e empírico. Para Nietzsche o espectador sem espectáculo é um conceito absurdo, assim como uma teoria que desse uma primazia ética e não uma primazia estética ao nascimento da tragédia. Um espectador, repito, tem a consciência, ou deveria tê-la, de que diante de si o que há é uma obra de arte.
De facto é a Schiller, no prefácio a obra A noiva de Messina quem Nietzsche escuta quando este diz que considera o coro como uma muralha viva erguida pela tragédia à sua volta a fim de se apartar puramente do mundo real, mantendo o seu solo ideal e a sua liberdade poética. Está aqui descartada a hipótese de naturalismo. A partir da visão de Schiller o coro da tragédia originária, o coro dos sátiros se movimenta a um solo elevado em relação à realidade dos seres mortais. O espectador grego vê uma estrutura flutuante, uma ficção de um estado natural, onde o coro visto pelo espectador projecta uma visão, que por sua vez é a visão do deus Dioniso. O que o espectador vê é o coro em sua projecção dionisíaca, ora a delirar, ora a profetizar, indagar, dançar e cantar…A projecção dionisíaca do coro não é uma projecção arbitrariamente fantasiada, pois a projecção diz respeito à uma realidade de teor de credibilidade como a do Olimpo. O coreuta, este sátiro devoto do seu deus, vive uma religiosidade reconhecida e através dele fala a sabedoria dionisíaca da tragédia. Fala através de um espírito, espírito que é música, música que se encontra numa relação de anterioridade em relação à música civilizada, domada. Diz respeito a um elemento que a civilização não doma. Esta música, que é uma disposição que produz uma harmonia, não uma relação matemática perfeita, uma harmonia que contém algo de dissonante, que toma a forma de tragédia, que é uma força indomável, inseparável do luto e que faz dançar e cantar, promove uma leveza. É uma força com atmosfera de luto e que ao seu tempo produz tal leveza. Neste momento o espectador passa a conhecer algo ainda não notificado nas suas vidas quotidianas. Sofre uma supressão, uma suspensão do sentido habitual, perante o coro e a sua visão dionisíaca, visão que permite uma experiência afectiva ainda não experimentada de modo efectivo, de proximidade enigmática, pois que vê-se envolto de estranheza na movimentação mais própria das suas vidas, estranheza que faz quebrar as distâncias entre um ser humano e outro, algo no seu todo acontece que o envolve e lhe confere uma nova visão, um vislumbre na essência das coisas. Esse vislumbre é de algo ainda não suspeitado, que paralisa a acção, pois advém-lhe a evidência da impossibilidade de, com a acção humana, organizar um mundo saído dos eixos. Sem o envolvimento de um véu, algo que limite uma visão tão penetrante, parece impossível o agir. O agir é fragmentado pela sensação de impotência, da nulidade da força particular de um sujeito. Aristóteles fala de catarsis, este processo através do qual o espectador passa e Nietzsche acrescenta a consolação metafísica do herói, que sabe que vai morrer e, evidencia que, apesar da mutabilidade dos fenómenos, o fundamento das coisas é indestrutivelmente poderoso e pleno de prazer, o encontro com o deus. O coro é formado por sátiros, diz Nietzsche, que vive por detrás de toda a civilização, permanecendo inextinguíveis e sempre os mesmos. Esta visão não é dada sem mais, o estado dionisíaco é convulsivo, pois nele opera-se a destruição das habituais barreiras e limites da existência. Colli chama a atenção por hoje estarmos rodeados pelo espectáculo, tudo hoje é espectáculo, e não apenas o teatro, o cinema, a televisão. Hoje também os homens de acção olham mais do que agem. Por essa razão ficamos aterrorizados, quando alguém consegue revelar o que foi a tragédia grega. De súbito percebemos que aquilo não era unicamente um ver, que aquele espectáculo era a essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objectos que acreditávamos serem reais. Se por um lado o grego perdia a capacidade de agir, não era por um problema de falta de penetração, mas sim um sentimento de impotência para modificar uma estrutura profunda que se dava ao olhar. A não acção do homem de hoje é por outro motivo, oposto, por não alcançar a penetração do grego e ficar-se mergulhado no mundo fenoménico.

terça-feira, julho 31, 2007

QUAL O SEGREDO DA NATUREZA?




O Jardim mais bonito da aldeia era também muito pequenino. Era o local preferido das crianças. Florisvaldo, o jardineiro, já estava muito velho e ao longo dos anos, cultivou o bom gosto. E nisto ele era excelente!

O que é um jardineiro?

Uma pessoa que rega as plantas com regularidade. Isto também a chuva faz… Aquele que revolve a terra para que as raízes possam desempenhar melhor a sua função de procurar água e minerais. Revolver a terra também fazem as toupeiras, as minhocas…

Um jardineiro será também aquele que poda, que tira as folhas secas e corta os ramos estragados, para que as flores possam desabrochar.

Um jardineiro é, sobretudo, aquele que conhece todas as suas flores e Florisvaldo cumprimentava-as todos os dias. O BOM DIA era a atitude importante para transformar as suas flores nas mais vivas e mais fortes de toda a aldeia.



As pessoas crescidas também gostavam de lá ir passear, ler, respirar bom ar, ou simplesmente estar um bocado, antes ou depois do trabalho. As crianças brincavam “às escondidas” por entre os arbustos, enquanto as borboletas prolongavam a beleza das flores, desenhando no ar figuras abstractas de alegria.


A alegria, como uma expressão de harmonia entre as pessoas, flores e bichos, fazia do pequeno jardim o lugar mágico da aldeia.

Não havia ninguém que conseguisse permanecer triste naquele sítio. O perfume dos lírios penetrava os sonhos das pessoas e, quando elas sonhavam livremente, com a ajuda da natureza, passavam a conhecer-se melhor. O poder do sonho fortalece o espírito e é no retorno à realidade que isto se verifica.

O jardineiro adorava trabalhar entre as flores, tão suaves e perfumadas! Mas, apesar da saúde que elas poderiam oferecer, Florisvaldo começou a sentir um cansaço inevitável. A idade já era avançada.

Florisvaldo adoeceu e, durante uns tempos, não pôde continuar a cuidar e cumprimentar as suas flores. As margaridas, os crisântemos , as rosas, lírios e jasmins começaram a perder a força e a cor da beleza viva.



O local mais bonito do lugarejo corria grande perigo!

Era vital salvar o jardim!

Aquele lugar não era apenas um jardim bonito onde se ia passear ou brincar. Era, para além de tudo, um lugar encantado, que devolvia a harmonia a todos os seres.

As crianças descobriram onde morava o jardineiro e os adultos acompanharam-nas. Os mais pequeninos deram-lhe beijos e os crescidos alimentos e afecto.


Em pouco tempo Florisvaldo recuperou a saúde e pôde, então voltar ao cuidado do seu jardim. As flores logo arrebitaram ao sentir a generosidade da sua presença. Os pássaros chilreavam com vôos rápidos ao redor do jardineiro.

Uma pequena nuvem, para mostrar o seu carinho e bom humor, mandou-lhe um pouco de chuva. O sol sorriu em intensos raios prontamente, e o pequeno jardim voltou a ser o que era, e ainda mais frequentado!

As crianças estavam muito atentas, enquanto os adultos perguntavam pelo belo segredo da natureza. Todos compreenderam, com a ajuda do jardineiro, que a beleza é eterna enquanto existe reconhecimento.

Vive-se o reconhecimento na alegria que sentimos quando comunicamos com as flores, como faz Florisvaldo.


As flores fazem-nos o favor de trazer o belo para bem perto de nós e, amando-as, permitimos que elas continuem belas.

sábado, julho 28, 2007

O MENINO POBRE E O CÃOZINHO ADIVINHAS




Havia um menino que morava num vale deserto. Ele tinha apenas cinco anos, mas já gostava de saber, de aprender com as pessoas e com a natureza à sua volta. Não tinha memória da verdadeira cor das coisas pois desde que nasceu, a seca já se encontrava instalada, e aquele tom desbotado não era o tom original da vida. Tudo ao seu redor tinha sempre uma cor acastanhada, com poucos vestígios de verde.

Também não tinha televisão e por isso não desejava brinquedos sofisticados, como acontece com aquelas crianças estimuladas pela publicidade. Ele tinha um cão, o seu único e verdadeiro amigo. O cãozinho acompanhava-o em todas as caminhadas e chamava-se Adivinhas, porque adivinhava todos os desejos do menino. O menino precisava de aprender muitas coisas, pois ainda não tinha idade para ir à escola, mas já sabia que quando crescesse, se tornaria um sábio.



Junto com o Adivinhas, gostava de imaginar e de pensar no tempo da sabedoria, pois com frequência brincava com a imaginação e nela chegava a muitos sítios nunca visitados. O cãozinho era muito orgulhoso do seu pequeno dono, de ideias tão grandiosas. O menino andava muito triste por não saber como alcançar os seus intentos. A falta de chuva não permitia que o solo fizesse germinar um caroço de ameixa, que até então guardava na algibeira.



Sempre acompanhado do seu cãozinho, cavava todas as semanas um novo buraco na terra seca, onde colocava o seu caroço de ameixa. Afagava uma grande esperança de ter uma amiga árvore que lhe desse sombra, frutos e muitos conhecimentos.
Não conseguia bons resultados. Ali nada crescia, nada florescia e não havia nuvens que pudesse enviar água de chuva… Adivinhas era um verdadeiro amigo, pois o facto de adivinhar os desejos do menino indicava uma proximidade. E a proximidade entre ambos não era apenas física, era, principalmente, uma proximidade do coração.



Estar perto do coração é o melhor que nos pode acontecer, os seres que se querem bem tornam-se semelhantes, pois, de algum modo, fundem-se como se fossem apenas um. Os desejos do menino inquietavam Adivinhas, pois também este conhecia a realidade da seca. Sempre que fazia xixi assistia à sua evaporação em menos de cinco minutos…O cãozinho até dava piruetas para entreter o menino, mas a proximidade dotou-o de superiores dons.
Num determinado instante o cão ficou imóvel, embora inquieto, e começou a ladrar em direcção ao alto de uma montanha. O menino, então, subiu-a acompanhado do cão. Precisava de pensar. Achou que era bom chorar e pedir aos anjos que pedissem a Deus que o ajudasse na realização dos seus projectos.

Lá no alto da montanha, os sentimentos eram muito grandes dentro do menino. Lá em baixo, tudo parecia muito pequenino, principalmente a sua árvore, que nunca nasceu. O menino chorou uma tarde inteirinha junto do cãozinho, que também chorava muito, porque queria ajudá-lo a chorar.



Todas aquelas lágrimas despertaram a montanha, que passou a jorrar do seu íntimo água pura, de uma fonte que esteve sempre lá, a espera de ser convocada! O menino e o cão ficaram muito admirados com todo aquele acontecimento! Desceram depressa a montanha molhados de seu novo riacho.

Chegando cá abaixo, encontraram a tão desejada árvore, prestes a nascer. E o menino ficou, então, mais feliz do que algum dia pudera imaginar, porque tinha um cãozinho que lhe adivinhava os desejos, uma árvore frondosa com galhos fortes para o baloiço, e, o que era mais surpreendente, um lindo e pequeno rio para mergulhar. É verdade que Advinhas também precisava de uns bons banhos, para livrar-se das pulgas…
E assim, cuidando do seu cão, respeitando e brincando com a sua árvore, o menino aprendia e perguntava ao rio tudo o que considerava importante.



O rio tudo sabia responder-lhe, porque tinha nascido da sua natureza mais profunda.
BIOGRAFIA
Maria Salles nasceu na Bahia, onde estudou jornalismo na Universidade Federal da Bahia. Trabalhou na TV Manchete Bahia, onde foi Repórter do Desporto Amador e Apresentadora do "Realce", com Clips musicais , desporto radical e entrevistas.
Trabalhou na criação da Agência de Publicidade Caixa Alta e Baixa, no Jornal Correio da Bahia e com colunas semanais : VELEJANDO, no Jornal A Tarde e IATISMO, na Tribuna da Bahia. Foi Assistente de Marketing da Alimba, empresa de laticínios, onde cuidava dos atletas patrocinados. Foi Tetra-Campeã do Norte e Nordeste de Vela, classe Laser e Campeã Brasileira da mesma classe, em 1987, Altura em que volta para a Europa, pois já havia vivido na Inglaterra, por um ano, logo que entrou para a Faculdade de Direito, na Universidade Católica, curso para o qual nunca voltou.
Hoje vive em Lisboa onde cursa Filosofia, na Universidade Nova de Lisboa, dedicando-se à Estética, área na qual deseja fazer Doutouramento ou Mestrado.Participa de tertúlias de poetas e banda desenhada.Tem três gatos, adora os amigos e a natureza. É do signo de Touro, ascendente em Leão, com lua em Peixes. Área de estudo: a tragédia grega, a épica .... Gosta de Nietzsche, Schiller, Aristóteles... Mantém a dupla nacionalidade: brasileira e portuguesa.

terça-feira, julho 10, 2007


ANTROPOFAGIA TROPICAL


Edição revisada


I

As badaladas esperavam com ansiedade a sua sonoridade pontual. Todas as pernas faziam seus movimentos de tesouras apressadas, desvairadas, no percurso das existências sem sentido, descendo e subindo degraus que se estiravam em curvas para levar os transeuntes até ao nível do solo ou ao cimo. Muitos fragmentos de intenções, nem sempre totalmente descortinadas, cruzavam-se sem se desmembrarem, nas suas insipiências, com a simples passagem dos outros. As intenções são persistentes e ainda que cegas vão abrindo caminhos às decisões que porventura encontram as suas brechas no mundo dos vivos impondo-se consoante a fibra que a cada um reveste. Assim também procedia o encanto pela atracção do primeiro dia em que o vira, uma sensação também obscura, mas não fraca, que prendia a alma aos encantos daquele novo modo, aquele ser que a envolvia e lhe roubava as capacidades de defesa. Já sabia do irreversível processo para o qual fora convocada. Era capaz de reconhecer aquela força à procura de corpos permeáveis à invasão para neles se instalar dominando sem pedir consentimento, como um vírus que muda de forma e cristaliza ao sentir-se perseguido. O hospedeiro parte para tão perigoso jogo com ou sem o receio que refreia a imaginação peregrina, a imaginação que aliena e desenvolve a sua habitação própria no centro de uma vida fragmentada, impondo-lhe uma unidade de destino indeterminado. Ele também a notara com o sabor que só a tropical espontaneidade afectiva poderia proporcionar, e intensificando a prosa com um dinamismo inesperado, uma força extra que acompanha uma maquinação desconhecida preparando a sua duração, as suas modulações, a sua cadência, a sua estadia. Ela não lhe passava despercebida e os olhares, forçosamente esparsos, denunciavam, pela proeminência da sua qualidade, o susto, o inesperado. A possibilidade com suas asas informes inquietava duas pessoas até então desencontradas, separadas, problematicamente sós. O interesse redobrava a emoção e o silêncio catalizava o entorpecimento que só quem o vive pode comunicar sem palavras, sem gestos, sem nada. Como se algum deus se apossasse do fascínio de duas pessoas despreparadas para tal confronto e então, com sarcasmo, as colocasse a mercê de um sentimento primitivo, anterior ao pensamento, desconcertantemente manifesto.


II

O encanto emudecera-os e ricamente preenchidos de nada engatilhavam lembranças minuciosas sobrevalorizadas pela emoção de uma memória, uma música tocada de saber, uma continuidade anunciada desdobrando-se em palpitações solicitantes de uma morada, uma habitação apropriada para a experiência de um colapso, uma perda próxima do controle envolvendo sofrimentos e danos, riquezas e tronos. O novo hospedeiro habitaria doravante ambos os corpos, misturando-se com as individualidades de cada um para gerar situações de espanto, de jogo, de vida. Aquela tez mediterrânica de andar indolente e olhar atento provocava-a, deixava-a em suspenso, provocava-lhe a perda da objectividade das coisas. Por instantes esqueceu a funcionalidade da caneta, da cadeira, da roupa que vestia e das soluções quotidianas na sua relação efectiva com o mundo. Um frio não meteorológico, não proveniente das condições físicas, a invadira promovendo-lhe uma sensação de transporte involuntário. Sentia-se perdida, não funcional, tolamente apaixonada por um futuro que emergia numa colecção de decisões incertas aproximando-a de um sentimento de colapso, uma perda de identidade, um instante de morte.
As mãos inertes caíram sobre a mesa de fórmica barata num gesto religiosamente doado e bem perceptível. Ele tornou a olhá-la e desta vez teve a certeza de uma totalidade que despontava fragmentariamente nítida. Muda, paralisada, com o olhar desconcertadamente desviado ela escrevia-lhe na imutabilidade das horas um testamento afectivo. Ele desarmava-se da sua vivência acumulada e precisava reinventar-se para encontrar a altura do instante diante. Isto implicava uma actividade em parte conhecida, mas na sua porção importante completamente nova e assustadora. Improvisava um sentimento de posse recriando-se como o possuidor à medida da presa. Perdia-se e continuava o seu discurso duplo, um suportado pelos significantes sonoros e outro penetrante, aparentemente mudo, promovendo qualidade ao resto. Sentia-se absolutamente vivo esbanjando o que gostaria de poder controlar e reter. Não queria errar os movimentos ou descontrolar as consequências e acabava por afrouxar a lógica de construção dos conceitos. Ela captara-o e propunha-se raptá-lo para longe de qualquer possibilidade arisca de escape, percebendo a inteligência hábil, camaleónica, a inteligência que por sua vez julgava poder auscultá-la. Inconscientemente desejava ser raptado, amordaçado, tratado ao gosto da assaltante convidada.


III

Lá fora o espaço aéreo estava composto por nuvens cortadas por andorinhas em revoada, o vento soprava alto com orgulho nímbico anunciando a possibilidade de chuva próxima. O sol opunha-se à lua que embora frágil permanecia na abóbada ao meio-dia, numa confluência de fenómenos perceptíveis ao olho humano, embora naquele momento só ele se encontrasse voltado para o cenário, mas alheio a este, pois que absorvido pela trama dos acontecimentos. Ela notara a confluência de imagens a que ele se sujeitara e desajeitadamente sentiu-se no centro do universo, enquanto ele dava passos lentos, estudados, calculando a distância na proximidade material aflitivamente indisponível. Encontrava conscientemente o canto em que pudesse afastar-se para sofrer a atracção em novo ângulo e suspeitou da possibilidade de alguma macumba. Felicitou o próprio destino e esboçou um sorriso de Alexandre, o Grande. O silêncio dominava as testemunhas imunes ao acontecimento destinando-as apenas à paisagem. A imaginação forjava um único campo magnético que a ambos protegia confluindo, indiferente ao cansaço, com as acrobacias do interesse. Doravante a vida ganharia uma nova textura a partir de uma tessitura que a quatro mãos conquistava o tempo oportuno das sensações variegadas revolvendo o mais próprio de cada um deles. Às vezes tinham que se olhar um ao outro, promovendo a cumplicidade no desconhecido e tudo se tornava explícito e aos poucos aprendiam a reverenciar o anunciado vencedor. As palestras sucederam-se com regularidade e esperar os esparsos momentos de tocarem-se com as retinas era a regra dos dias, escamoteando a sondante omnipotência em encontros aparentemente casuais. Facto que resvalava para regiões misteriosas da esfera entre o profano e o sagrado e os dotava de uma atmosfera em crescente poder que ora se assumia enquanto distinta, ora enquanto caótica. A comunicação pelo silêncio era mágica e a palavra começava a estabelecer-se em fragmentos de espanto partindo do sensual e alcançando o filosófico. As personalidades ofereciam seus contornos e os primeiros passos para o conhecimento disparavam-se com teoria e divindade doadora de sentido, que sem conceito de fim, sem significado, se sustentavam no belo. A imaginação disparava na busca das formas fugidias sendo impossível estabelecer qualquer definição. E esta impotência da razão transformava-se em ternura exótica. Não se despediam, debandavam, não sem antes se espreitarem com o sistema nervoso em frequências desencadeantes da acção. O desejo era de unidade, mas os receosos passos contrariavam o alado e rechonchudo deus que manejava impunemente o seu arco e flecha.

IV

Os dias passam a voar e os apaixonados em vésperas de si próprios nem sempre sabem fazer atrasar o tempo e moldá-lo às suas disposições, pois entre o amor e a vida pode haver muito espaço e os contratempos têm arestas promotoras de outros atritos e nós que tomam proporções indesejáveis pela ausência, que deixa de fora o toque das fracções do abraço, do beijo. Cada partida representava uma demora de sofrimento esgarçado, sem direito a despedida, enquanto fingiam, um ao outro, nada levar consigo de importante enquanto esparsos olhares traíam a mentira quase adolescente e pouco sustentável, no dobrar do lance de escadas que enrolando-se para a esquerda, ao modo de uma serpente, fugia de um destino que mete medo. Mais adiante olhou por um ângulo inferior em degraus obtendo sobre si paralela visão de pernas sob calças que avançavam sobre o presente. Recompondo a sobriedade terminava os degraus com passo lento, mostrando o pescoço tenso, a cabeça inclinada, pretendendo alcançar, o melhor possível, o nível do solo ainda que com determinada frustração prolongada. Ela examinava o que acontecia sem compreender a violência impregnante da distância, da força contrária ao óbvio, contrária a sua movimentação natural que a convidava a segui-lo, a simplesmente caminhar a seu lado, como se isso fosse lógico.
Restava-lhe a visão dos pardais cruzando o pátio em voos baixos à procura de farelos e esses chamavam-lhe a atenção perdida no vazio da perplexidade muda. Observava o alarido das crias em sua aprendizagem de autonomia. A responsabilidade das mães pássaro era o único espectáculo possível, e abstraindo-se de tudo o mais à sua volta, continuava a fixar-se nos pardais que se movimentavam sem a hesitação de comer ou levar no bico. Levar no bico a migalha encontrada, depois de tanto procurar na actividade semi-circular da cabeça, era o que se permitiam os adultos que cuidavam ninhos, sendo imediatamente imitados pelas crias. A ansiedade encontrava um ancoradouro sólido e distribuía o cansaço, trazendo o peso da melancolia arrastada na lentidão do tempo, socorrida apenas pelas ideias estéticas que em letras de forma preenchem o papel, na ânsia de concertar o momento disperso. A literatura encontra-se com a filosofia e na magia dos dedos obsessivos no teclado, enquanto ele o testemunha, ao passar despercebido, deliciando-se na concentração dela, uma música se despeja em capítulos e o sentimento toma novas formas apertadas, como na contenção própria da arte dos bonsais.

V

Parada, notara uma sombra que atravessava uma vidraça. Ele olhava-a há alguns segundos e ela por acaso descobria seus aposentos literários e espantando-se com a quantidade de reinos desconhecidos no seu percurso quotidiano. Há muitos anos que frequentava aquele lugar, ocupando com naturalidade aquele espaço, com o tempo tão seu, e no entanto não se lembrava de algum dia o ter visto, e perguntava-se se ele ali agora, enquanto sombra, já a conheceria ou não. Não sabia o que pensar sob as restrições que acompanham cada vida em particular, que nada mais é que uma pequena clareira movimentando-se numa escuridão. Ter ali passado muitos dias e durante muitos anos não os fazia velhos amigos. Como se a vida, enquanto reservatório, guardasse sempre e no mesmo lugar surpreendentes novidades, coletes salva-vidas e botes contra o iminente tédio. O amor a que se aspira no desenrolar de uma paixão é uma ponte. Numa das vezes em que se encontraram diante de si próprios pela presença do outro, inconscientemente padeciam de uma sensibilidade já acumulada, treinada na leitura de pequenos gestos e sob qualquer variação de atitude uma modificação fisiológica inesperada desencadeava uma nova expectativa, desconcertante, promotora de embaraço. Deu-se uma recolha mútua, de parte a parte, enquanto ganhavam tempo para integrar novos dados que a natureza oferece como um bónus aos que devem entregar-se em paixão, no consumo combustível dos corpos, onde a química justifica a sua existência. A confusão ia-se dissipando em momentos de clareza, e a necessidade solidificava-se na consciência do estado actual em que a fruição chamava os elementos do desejo. Eles a nada sabiam dar início, olhando-se simplesmente, sem poder ainda dissolver a inadequação de uma temporalidade anunciada. Haverá uma causalidade nas impressões que empurra o momento futuro para o presente actual e o manipula, brincando com uma maldade singular com aquilo que indefeso pede cuidados para crescer robusto.

VI

Ele gostava de provocá-la até ao ponto de aproximar-se e olhá-la demoradamente nos olhos, ela absorveu o olhar devolvendo-lhe um sorriso de comunhão. Ele suspirou. Ela encontrou uma maneira de informá-lo da frequência do pensamento, mas ele não esteve a altura da exposição, da situação. A complexidade potenciou-se e todo o aprendizado fora mandado para a reciclagem e começar do zero dificilmente se harmonizaria. Os momentos degradaram-se e a segurança perdeu a sua almofada. Ele forçava uma comunicação quase desesperada mas mesmo alcançando seu receptor nem por isso o retirava de um buraco da escura emoção onde caíra.
A beleza partira-se aos bocados e num gesto de oração ela apanhava os cacos e submetia-se a uma remissão simbólica ao perdido.
Tudo se tinha modificado e a estranheza voltava-se para o exterior inóspito. A escuridão era desconsoladora e promovia um duro questionamento que se impunha como uma acusação num tribunal. Ninguém sai incólume das forças secretas da natureza, estas exercem os seus poderes de modo tal que promovem uma anarquia no sistema fisiológico elementar do organismo. Ela não foi excepção. Um dia teve uma paragem de digestão, consequência de emoções mal administradas que ao sabor de energias estranhas acarretam danos somatizados pelo instante arrogante. Passou a ter medo de comer mas nem por isso perdeu muito peso, comia pouco e amiúde pois a fome e o sem sentido da situação devoravam-na. A recuperação, sendo lenta, dá tempo ao pensamento para a configurar em melodia criada na ausência. Sonhara com a fusão total, pela fricção do tacto, a sofisticação do olfacto, o prazer do paladar autenticado na visão redentora, ao som de tambores nalgum terreiro de candomblé esquecido na memória. Noutro dia, perdida a capacidade de atenção, enquanto atravessava uma avenida movimentada, não vendo um buraco, torceu um pé. Vinha distraída a pensar nele e o momento da torção provocou uma dor violenta levando-a ao chão, com dificuldade soergueu-se, com um carro à frente, alcançando a calçada sentou-se num banco de jardim. Pulando sobre um único pé, pôde parar e tentar avaliar a situação. Mas a dor intensa escureceu-lhe os olhos e quando deu por si estava caída com a cara agarrada as pedras, acossada de súbita vergonha levantou-se ainda tonta de volta para o banco. Suspeitava da brevidade do desmaio, alguns segundos, pois ninguém a rodeava, e permaneceu ali mais um tempo, como quem aprecia a paisagem, bebeu água e dirigiu-se para o autocarro. Pensou que talvez na sua primeira encarnação, teria vindo ao mundo na pele do primeiro filósofo, Tales, que distraído, caíra num buraco, facto que tornou a sua criada famosa por rir-se do amo. Haveria ali alguma criada? Procurou-a à sua volta e ponderou que a fama desta a esgotara, que teria perdido a razão da sua existência. Hoje talvez se ria de outras coisas, como do ordenado! Ele, por sua vez, também se atarantava nos gestos mais corriqueiros, como aconteceu certa vez, quando fechara a porta de casa com a chave dentro e, atrasando-se para os seus compromissos, decidiu resolver a situação de um modo insólito. Tocou à campanhia do vizinho de baixo e explicando-lhe a situação, obtivera a permissão para, através da varanda, saltar como um macaco para a sua. Movimento que punha a prova a capacidade de seus músculos, pois com um pulo, segurava-se à sacada da sua casa, mas ainda faltava fazer subir o seu corpo, o que implicava força. Com a sua habilidade conseguira o seu intento recuperando a chave e gostaria que ela estivesse presente para testemunhar a sua coragem, a sua flexibilidade, e, orgulhoso da sua destreza, dedicava-lhe o sucesso.
Foi tudo o que a natureza lhes ofereceu: contratempos. Ele ofereceu-lhe macacadas a bel-prazer. Ela não sabe o que lhe deu. Sabe apenas que ainda não alcançaram o tempo da delicadeza. Hoje passam um pelo outro como dois desconhecidos.