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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

No Nascimento da Tragédia de Nietzsche o leitor é arrancado à soberania de uma visão do mundo mais ou menos estável, do desenrolar normal dos fenómenos causais, para ser lançado ao confronto assustador de uma realidade profunda e misteriosa – que tem o poder de arrebatar tudo quanto há, e que nada deixa por perpassar. Neste confronto tudo se transforma tomando novas colorações e simbologias não dominadas. Entre as artes, aquela que é responsável por esta força, por ser a mais espiritual de todas, é a música. A música não depende de nenhuma transformação de materiais, sustenta-se a si mesma e invade o ouvinte, transformando-o e, no caso dionisíaco, arrebatando-o em excesso. A música coloca o ouvinte em estado de embriaguez, subtraindo-o à sua individuação, para depô-lo na contemplação da verdade – que não se dá a ver sem mais, mas que a tragédia dá a ver, pois a música penetra no humano pelo seu carácter espiritual que aliada a palavra no drama encontra a sua temporalidade apreensível pela memória. A memória, para falar como Colli, dessedenta o homem, dá-lhe a vida, liberta-o da secura da morte. E neste recuperar do abismo do passado que o homem identifica-se com Dioniso. Trata-se das forças ocultas da natureza que exigem, para que sejam encontradas, uma transgressão, um salto. Salto que se encaminha para ser dado na tragédia alicerçado no mito trágico. A transgressão é crime contra a natureza mas, ao mesmo tempo, a única forma de lhe aceder. É porém, na compaixão que se apodera do sujeito que este se salva da descarga da dor primordial do mundo, tal como o pensamento e a palavra salvam da desgraça incontrolada da vontade inconsciente. Pela compaixão está-se junto da dor, a do herói que sofre ao experimentar a dor de Dioniso e que pela palavra socorre-se.
A razão consciente é uma pequena parte controlada do humano e nada pode fazer contra o poder musical dionisíaco, a não ser ganhar algum tempo no desenrolar do drama, pois que Apolo vem em socorro, para logo a seguir devolver o herói a Dioniso. Apolo é a consciência profunda da natureza, a consciência curativa, seja no sono, no sonho ou na arte que se dá enquanto símbolo de vidência. A tragédia grega que nasce sob o olhar de Nietzsche emerge da união destes dois impulsos, o apolíneo e o dionisíaco, onde Apolo, o deus solar – que cura, mas que também é terrível – se coloca à disposição de Dioniso, que é seu irmão, dado serem ambos filhos de Zeus. Giorgio Colli vê uma afinidade entre os deuses no que diz respeito ao jogo da inteligência e a perversão: O labirinto que Dédalo construiu com a ajuda de Dioniso para dominar o Minotauro, e, a forma oracular enigmática. A diferença que é relevante é o uso da palavra em Apolo. Colli acentua as identidades profundas de ambos os deuses. Nietzsche isola a oposição entre as divindades. Dioniso, tendo recebido os raios do pai, ainda em embrião, é socorrido por ele. Noutra versão do mito, Dioniso é identificado como sendo Zagreu, o indestrutível que, ainda que despedaçado pelos Titãs, emerge, em seu sofrimento de múltiplas individuações. Apolo é o deus terrível, que também é inseparável do conhecimento e da verdade. Deus da medida, solar, mas também da desmedida, sendo aquele que encaminha o herói a cometer insolência. Em ambas as divindades há uma conservação de ambiguidade.
Nietzsche encontrou na música de Wagner o suporte imaterial que, ao revelar o seu poder, possibilitou o seu regresso aos gregos desse momento especial de transição do culto dos mistérios para a articulação do pensamento filosófico. Os gregos que conheciam os horrores da existência. A tragédia, no seu melhor, concentra-se nas obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Este último torna-se o centro das zombarias de Aristófanes e da crítica de Nietzsche, por operar transformações racionais e obliterar os mistérios. Aristóteles foi o primeiro a teorizar sobre a tragédia, tornando-se incontornável para quem a queira estudar. Hierarquizou os géneros literários, reservando para a mesma o grau supremo da poesia. Mas não auscultou, como Nietzsche, o espírito da música, música que é uma disposição, uma harmonia emergente num salto que escapa à causalidade dada no limiar do fenómeno, no retirar da máscara, na vidência de um para lá da máscara. Aristóteles pensou a catharsis como uma purificação, em Nietzsche a consolação metafísica, não dissolve a tensão da polarização, pelo contrário, mantém-na facultando uma elevação do ponto de vista, num movimento heraclitiano e goethiano frente ao devir.

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