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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

domingo, outubro 28, 2007

Cassandra, profetiza de Apolo

Ao perceber a imobilidade e silêncio de Cassandra na fascinante tragédia de Ésquilo Agamémnon, o coro volta-se para um intensa comunicação com a profetiza. Primeiro há que esclarecer o papel de Cassandra no mito: Apolo, o deus que atira ao longe, o deus da espada de ouro, do arco de prata, tem para além de tantos outros epítetos, já sabemos, também o de Lóxias, o oblíquo. Ora, Apolo enamorou-se de Cassandra, princesa de Tróia, filha de Príamo, e esta "sentiu-se obrigada" a retribuir ao amor do deus, tendo, por isto, feito juras de entrega afectiva. Foi a maneira mais rápida de se livrar das perseguições do deus poderoso, que, de facto, apaixonado podia ser violento. Quando os deuses se apaixonam o fazem na procriação, querem imediatamente conceber um filho. Apolo tornou Cassandra sua profetiza e dotou-a dos dons da profecia. Mas Cassandra não cumpriu a sua palavra de entregar-se a Apolo e este, ao contrário do que qualquer pessoa faria, não lhe retirou o dom da profecia, antes cuspiu-lhe na boca, retirando-lhe a credibilidade. Doravante, Cassandra vaticinaria, mas ninguém acreditaria nela, embora falasse uma língua compreensível.
O coro presta atenção à Cassandra e discorre sobre sua apreensão, seu terror, "a alma em sobressalto que entoa sem lira um canto lúgubre, das Fúrias vingadoras, do coração a palpitar frenético, quase saltando, delirantemente, no peito onde há o instinto da justiça e o dom divino dos presságios certos"1120 a 1150. O coro ausculta, com alguma precisão o coração apavorado de Cassandra, que no drama, tem uma presença muito forte. O canto divino sem lira é o canto da Musa ou Musas. O pavor de Cassandra engendra um silêncio agónico, tumultuado e convulsivo, como é próprio do prelúdio profético, a iminência da transitividade do ponto de vista que revelará uma identidade diacrónica, com revelações súbitas, não antecipáveis para uma pessoa a quem não tenha sido concedida o dom profético.
É Dioniso o principal homenageado, pois Melpomene, a Musa trágica revela estreita relação com o deus. Entre os três tragediógrafos é Ésquilo quem mantém relação estreita com Dioniso, seja no delírio a ele inerente, seja nos silêncios acentuados, como o da sentinela, a partir do verso 26, e o de Cassandra em seguida aos versos 1191 e 1200, opondo-se às ordens de Clitemnestra. E o silêncio do coro, depois de 1547, antes do grito de Agamémnon. Há silêncios de completude, mas há silêncios que são apreensões, antecipações de algo, no próprio ou do outro que não se conhece, e funda uma profundidade no drama trágico, profundidade temerosa. O silêncio dá-se no calar-se, uma suspensão da voz que gera a mudez, que é um momento desprovido de significante, palavra sonora: O silêncio de Cassandra é o real efectivo que traz consigo algo de sombrio e perigoso e o mundo fenoménico já não se sustenta. É a emergência de um subsolo que traz uma verdade ainda não vivida ainda não auscultada que já promete eficácia tumultuada, pois que já começa por levantar seu véu de escondimento. O anúncio disto é esta própria mudez, na sua qualidade que anuncia terror e perturba o coro, pois este extravasa o âmbito do humano e das Musas próprias do coro.
Antes, as musas eram associadas à pureza. São nestes momentos que o texto cresce e é Nietzsche em O Nascimento da Tragédia que vai bem longe ao afirmar que o dionisíaco é a chave da genialidade da tragédia grega. As musas partem dos cantos apolíneos em busca do obscuro Dioniso. Os momentos de Cassandra, diante do palácio, começam a ser delirantes e convulsivos.
Clitemnestra volta do palácio na intenção de fazer Cassandra entrar, e chama-a, mas Cassandra permanece em silêncio. O Corifeu tenta acordar a profetiza, interpretando a sua atitude como a de "um animal selvagem recém cativo, inconformado com as amarras" 1215. Clitemnestra conclui pelo seu desvario e fica sem paciência, voltando ao palácio.
Cassandra, então, desce do carro e em soluços, fala em tons alternados de lástima e exaltação, como se estivesse em transe. Apolo e Dioniso partilhando um grito e uma mesma honra, e este binómio, diz Nietzsche, é um autêntico produto da tragédia. A evidência de Cassandra é incontornável com seus gritos que são cantos e seu canto em forma de grito. Começa por produzir um canto de que não se percebe de modulação de mau augúrio em medidas agudas, 1230-1490. É neste sentido, o do luto, que a música e o seu espírito é lúgubre, sinistro que envolve o herói arrebatando-o à normalidade.
Cassandra adquire um tom sinistro, e o Corifeu descodifica que ela adivinha os próprios males. Invoca Apolo, que, segundo julga o Corifeu, ser um deus que nada tem a ver com o pranto e a dor. Mais tem, e Cassandra sabe do amor de Apolo por ela e do seu ódio, por não ser correspondido, tornando-se no seu destruidor. Nesta peça, o amor de Apolo é um amor violento numa manifestação às avessas, ao entregar Cassandra a Dioniso.
Cassandra acede aos antepassados da família real, toda a desgraça de Atreu e Tiestes. O delírio dionisíaco se intensifica e o coro deixa de percebê-la. Cassandra tem a visão do assassinato de Agamémnon, vê o bando de Erínias, as entidades vingadoras de crimes consanguíneos. Em 1290, Cassandra sabe que vai morrer. O coro ouve de Cassandra um canto desencantado, fúnebre e compara-a ao rouxinol da lenda de Procné a chorar o filho Ítis, morto pela mãe. E as lamentações proféticas seguem, ora com suavidade, ora com desespero, entre gritos e convulsões. Nos momentos fortes do transe a voz da profetiza alcança o grotesco, o animalesco.
Sai da lamentação de si própria e relembra as trágicas bodas de Paris e Helena, a desgraça de todo um povo! Evoca os rios do Hades, Cócito e Aqueronte, onde em breve, sabe, irá cantar as profecias. Visão contraposta ao rio Escamandro, onde brincou em criança.
Nesse momento o coro se apercebe que Cassandra vaticina sobre si própria, e a ira de Apolo se manifesta em ódio tão violento quanto a entrega às musas do seu companheiro Dioniso que a levará a morte, não sem o sofrimento da profetiza, pois esta vê a sua própria queda 1334. O coro fala de um possível espírito maligno a se apoderar da prisioneira, constrangendo-a a derramar lágrimas em confronto com a iminente morte 1340. Ao farejar homicídios antigos, intui a sua própria morte. Vê as Fúrias, num canto de morte, cantar as primeiras mortes da família. Para dizer que estará a dizer correctamente, usa a metáfora do arqueiro, que acerta o alvo, alusão a Apolo.
Cassandra pede a confirmação ao Corifeu sobre a história da família e o Corifeu fica impressionado com a precisão 1370. Então Cassandra confessa o seu dom de profetiza, dom de Apolo, pelo seu ardente amor por ela. O Corifeu quis saber se os ritos amorosos foram praticados e Cassandra diz que prometeu e não cumpriu. E que então caiu em descrédito. Ela inclusive vaticinou a queda de Tróia, também relatado na Eneida, de Virgílio.
Subitamente, Cassandra volta a agitar-se, volta a ser dominada pelo delírio e vê nitidamente o modo como Agamémnon morrerá, depois da visão das crianças de Tiestes mortas 1395. Cassandra já não se preocupa se lhe dão crédito, pois sabe que no cume dos delírios não a compreendem 1420. E diz ao Corifeu que este a reconhecerá, dentro de instantes, profetiza, pois também ela vai morrer. O Corifeu já tinha compreendido a parte do banquete de Tiestes a comer os seus próprios filhos, mas sobre o resto tem dúvidas 1430. E a confirmação da morte de Agamémnon obtém-se em 1434.
O Corifeu encontra-se um tanto perdido, pois a partir da sua posição apolínea não compreende planos criminosos. Cassandra diz falar bem a língua helénica e o Corifeu responde que também a Pitonisa, mas ninguém a compreende1443. Segundo Loraux, Ortos é relativo à correcção do movimento apolíneo, sob uma música direita e orthos é o grito alto, como o grito de guerra que mete medo ao adversário. Apolo se aproxima dos gritos do luto, Iakkos, também relativo a um verbo que apresenta Dioniso nos mistérios de Elêusis. Para os gregos Iakkos apresenta duas características: o nome era evocado de modo alto e em repetição infinita, promovendo deste modo um aumento na disposição musical. Os gregos tinham presente, como já disse, que Dioniso ainda embrião recebeu a luminosidade de Zeus em toda a sua potencialidade, quando ainda se encontrava na barriga da mãe.
No grito Evohé, um grito báquico, Apolo transparece como uma visão imediata de Dioniso, como em Sófocles no stasimon de Édipo rei. Põe em evidência duas correntes fundamentais: a imitação do mundo das imagens e a imitação do mundo da música, ganhando preponderância, o segundo, Cassandra vê fogo a avançar sobre ela e decide partir o ceptro de profetiza e se livrar das insígnias de Apolo, fitas, que a distinguia 1455. E diz claramente ser Apolo o seu maior inimigo, por amá-la é o causador da sua morte. Mata aquela que ele próprio inspirou, depois de tantas provações sofridas 1468. Cassandra é a carpideira de Apolo manifestando uma estrutural impossibilidade de comunicação, embora num longo diálogo, engendrando uma reflexão, segundo Loraux, meta-teatral. Schiller discorre sobre o carácter reflexivo da poesia sentimental que aponta para uma idealidade no infinito que não é, de todo em todo alcançada. Cassandra é uma profetiza virgem e apolínea incapaz do preceito délfico "Conhecer-se a si próprio", onde a pergunta inquietante é porque gemer em nome de Lóxias? Este momento é o de um Apolo que mete medo.
No mesmo seguimento profético, vê Orestes chegando para vingar o seu amado pai 1472. E aceita o seu destino com firmeza 1490. Pois sabe que lutas não a salvará 1500. Na primeira tentativa de entrar no palácio, recua com expressão de horror, pois sente o cheiro de sangue que de lá vem. O Corifeu diz ser dos sacrifícios, e lembra-lhe da existência de incensos sírios. E outra vez encaminha-se para o palácio e torna a recuar e pede aos anciãos que sejam testemunhas do que se vai passar, referindo-se a sua morte e a de Agamémnon. Pede ao Sol que dê destino igual aos inimigos, assassinos de uma escrava, presa fácil. Lamenta-se da sorte dos mortais, triste sorte 1525.
Neste momento o coro reflecte a situação humana, o facto de não estar em situação de poder gabar-se de haver destino isento de tristezas 1445. Ouve-se o grito de morte de Agamémnon e a métrica dos versos sofre um aumento, enquanto o Corifeu pede silêncio. E ouve-se Agamémnon queixar-se de novo ferimento.
O coro sabe da morte consumada e começa a deliberar sobre o que fazer e as opiniões são diversas. E nesta equivocidade uns dizem da impossibilidade de poder afirmar, apenas por ouvir gritos, a morte de alguém, o que impossibilita uma decisão.
Abrem-se as portas do palácio com a iminência dos anciãos entrarem. Vêem-se os corpos do rei e da princesa de Tróia, e Clitemnestra tem as mãos e o rosto manchados de sangue. Clitemnestra se ufana de seus planos e seus actos, dizendo ser esta a sua missão 1590. Emaranhou o rei numa rede e depois o golpeou duas vezes. No terceiro golpe, o rei já estava morto, mas o fez em homenagem a Zeus.
O Corifeu espanta-se com a arrogância de Clitemnestra, apontando-a num acto injusto. O coro indaga sobre que erva má terá ela ingerido para pensar ter assassinado o marido justamente, 1625-1630. É ameaçada de banição, exílio. Aos olhos do coro Clitemnestra é uma desvairada. Clitemnestra diz que sua justiça é vingar a sua própria filha. A morte é em nome do amor que nutria pela adorável Ifigénia. E diz também ter vingado as crianças inocentes, irmãs de Egisto, mortas por Atreu.
O coro se preocupa com o funeral de Agamémnon, mas Clitemnestra afasta-o dizendo-lhe que tais cerimónias não lhe compete. Egisto aparece e lembra a desgraça dos irmãos pequenos, pois ele foi o único que se salvou, e diz ter sido um agente da justiça ao planear a morte do primo 1880. O coro fala do ódio do povo, que Egisto não escapará. Egisto responde mostrando-lhe o lugar inferior e a possível tortura de fome e prisões que os inferiores estão sujeitos 1885. O Corifeu acusa-o na sua covardia de apenas tramar e não consumar o acto 1915. Egisto admite que era muito mais fácil ser Clitemnestra a fazê-lo, pois ele era suspeito.
Egisto cansa-se e põe os soldados contra os anciãos. Clitemnestra intervém dizendo que ambos terão o poder suficiente para por em ordem a situação sem ter que dar ouvidos aos velhos e entram para o palácio.
É Aristóteles o primeiro a estruturar o estudo da tragédia e da poesia em geral. E um dos momentos do seu pensamento que aqui nos importa directamente é que a tragédia deve imitar casos que suscitem o terror e a piedade, pois tal é o próprio fim da tragédia. A piedade tem lugar naquele que é infeliz sem o merecer, mas não pode ser em homens muito bons que passem da boa para a má fortuna, pois Agamémnon não era assim tão bom. Mas de facto tinha a seu favor o facto de ter vencido a guerra, quando era o chefe de expedição e o próprio facto de ter sido o líder revelava o seu poderio militar. Neste sentido, ele merecia ser bem recebido, e a sua morte no regresso, causa terror e piedade, comete a insolência em pisar tapetes reservados aos deuses, a hubris.

1 comentário:

Cris Banana disse...

não seria hybris?