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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

sexta-feira, agosto 03, 2007

O Coro enquanto momento inaugural da tragédia, dança e canto em honra a Dioniso

A tragédia era inicialmente dança e canto coral em honra a Dioniso. Era executada por cantores que se vestiam ou mascaravam com peles de animais e se identificavam como seres divinos, tendo sua forma primitiva muito próxima da lírica que se desenvolve em géneros distintos pelo modo como assimila os mitos encontrados na poesia épica. O drama funda-se no tipo de transformação em que o coro representa as pessoas do mito, convertendo-se em actor. A tragédia, distanciando-se da lírica, estava ligada a uma única celebração religiosa, o culto a Dioniso e a representação do mito deu-se em forma dramática, que pouco a pouco foi se distanciando desta unilateralidade de culto.
Nietzsche propõe que olhemos para o cerne desse coro, sua origem religiosa. Pois a tradição diz-lhe de modo categórico que a tragédia surgiu do coro trágico e que era na origem apenas coro, e então devemos olhar para o cerne desse coro enquanto drama primordial. Por um lado, cita Schlegel com a interpretação de ser o coro a essência e o sumário de espectadores, o coro enquanto o espectador ideal, mas Nietzsche ressalta a dificuldade de encontrar analogias entre o público de teatro e o coro trágico. Decide-se pela visão de Schiller, uma muralha viva que protege o acontecimento em cena de qualquer interpretação que mine uma elevada forma de arte. Os sátiros, membros do coro, eram seres metamorfoseados e discípulos fiéis do seu deus, Dioniso.
Para dar início a sua argumentação afirma que o verdadeiro espectador teria que ter a consciência permanente de que diante de si o que há é uma obra de arte, contra a ideia de que o coro trágico grego vê-se na obrigação de ver figuras reais em palco, considerando o deus em cena não menos real que a si próprio. Então a expressão de Schlegel sugere, contrariamente ao que Nietzsche pensa, que o mundo cénico produzisse um efeito não estético, mas sim físico e empírico. Para Nietzsche o espectador sem espectáculo é um conceito absurdo, assim como uma teoria que desse uma primazia ética e não uma primazia estética ao nascimento da tragédia. Um espectador, repito, tem a consciência, ou deveria tê-la, de que diante de si o que há é uma obra de arte.
De facto é a Schiller, no prefácio a obra A noiva de Messina quem Nietzsche escuta quando este diz que considera o coro como uma muralha viva erguida pela tragédia à sua volta a fim de se apartar puramente do mundo real, mantendo o seu solo ideal e a sua liberdade poética. Está aqui descartada a hipótese de naturalismo. A partir da visão de Schiller o coro da tragédia originária, o coro dos sátiros se movimenta a um solo elevado em relação à realidade dos seres mortais. O espectador grego vê uma estrutura flutuante, uma ficção de um estado natural, onde o coro visto pelo espectador projecta uma visão, que por sua vez é a visão do deus Dioniso. O que o espectador vê é o coro em sua projecção dionisíaca, ora a delirar, ora a profetizar, indagar, dançar e cantar…A projecção dionisíaca do coro não é uma projecção arbitrariamente fantasiada, pois a projecção diz respeito à uma realidade de teor de credibilidade como a do Olimpo. O coreuta, este sátiro devoto do seu deus, vive uma religiosidade reconhecida e através dele fala a sabedoria dionisíaca da tragédia. Fala através de um espírito, espírito que é música, música que se encontra numa relação de anterioridade em relação à música civilizada, domada. Diz respeito a um elemento que a civilização não doma. Esta música, que é uma disposição que produz uma harmonia, não uma relação matemática perfeita, uma harmonia que contém algo de dissonante, que toma a forma de tragédia, que é uma força indomável, inseparável do luto e que faz dançar e cantar, promove uma leveza. É uma força com atmosfera de luto e que ao seu tempo produz tal leveza. Neste momento o espectador passa a conhecer algo ainda não notificado nas suas vidas quotidianas. Sofre uma supressão, uma suspensão do sentido habitual, perante o coro e a sua visão dionisíaca, visão que permite uma experiência afectiva ainda não experimentada de modo efectivo, de proximidade enigmática, pois que vê-se envolto de estranheza na movimentação mais própria das suas vidas, estranheza que faz quebrar as distâncias entre um ser humano e outro, algo no seu todo acontece que o envolve e lhe confere uma nova visão, um vislumbre na essência das coisas. Esse vislumbre é de algo ainda não suspeitado, que paralisa a acção, pois advém-lhe a evidência da impossibilidade de, com a acção humana, organizar um mundo saído dos eixos. Sem o envolvimento de um véu, algo que limite uma visão tão penetrante, parece impossível o agir. O agir é fragmentado pela sensação de impotência, da nulidade da força particular de um sujeito. Aristóteles fala de catarsis, este processo através do qual o espectador passa e Nietzsche acrescenta a consolação metafísica do herói, que sabe que vai morrer e, evidencia que, apesar da mutabilidade dos fenómenos, o fundamento das coisas é indestrutivelmente poderoso e pleno de prazer, o encontro com o deus. O coro é formado por sátiros, diz Nietzsche, que vive por detrás de toda a civilização, permanecendo inextinguíveis e sempre os mesmos. Esta visão não é dada sem mais, o estado dionisíaco é convulsivo, pois nele opera-se a destruição das habituais barreiras e limites da existência. Colli chama a atenção por hoje estarmos rodeados pelo espectáculo, tudo hoje é espectáculo, e não apenas o teatro, o cinema, a televisão. Hoje também os homens de acção olham mais do que agem. Por essa razão ficamos aterrorizados, quando alguém consegue revelar o que foi a tragédia grega. De súbito percebemos que aquilo não era unicamente um ver, que aquele espectáculo era a essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objectos que acreditávamos serem reais. Se por um lado o grego perdia a capacidade de agir, não era por um problema de falta de penetração, mas sim um sentimento de impotência para modificar uma estrutura profunda que se dava ao olhar. A não acção do homem de hoje é por outro motivo, oposto, por não alcançar a penetração do grego e ficar-se mergulhado no mundo fenoménico.

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