Filosofia,literatura e outros...

Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

terça-feira, julho 10, 2007


ANTROPOFAGIA TROPICAL


Edição revisada


I

As badaladas esperavam com ansiedade a sua sonoridade pontual. Todas as pernas faziam seus movimentos de tesouras apressadas, desvairadas, no percurso das existências sem sentido, descendo e subindo degraus que se estiravam em curvas para levar os transeuntes até ao nível do solo ou ao cimo. Muitos fragmentos de intenções, nem sempre totalmente descortinadas, cruzavam-se sem se desmembrarem, nas suas insipiências, com a simples passagem dos outros. As intenções são persistentes e ainda que cegas vão abrindo caminhos às decisões que porventura encontram as suas brechas no mundo dos vivos impondo-se consoante a fibra que a cada um reveste. Assim também procedia o encanto pela atracção do primeiro dia em que o vira, uma sensação também obscura, mas não fraca, que prendia a alma aos encantos daquele novo modo, aquele ser que a envolvia e lhe roubava as capacidades de defesa. Já sabia do irreversível processo para o qual fora convocada. Era capaz de reconhecer aquela força à procura de corpos permeáveis à invasão para neles se instalar dominando sem pedir consentimento, como um vírus que muda de forma e cristaliza ao sentir-se perseguido. O hospedeiro parte para tão perigoso jogo com ou sem o receio que refreia a imaginação peregrina, a imaginação que aliena e desenvolve a sua habitação própria no centro de uma vida fragmentada, impondo-lhe uma unidade de destino indeterminado. Ele também a notara com o sabor que só a tropical espontaneidade afectiva poderia proporcionar, e intensificando a prosa com um dinamismo inesperado, uma força extra que acompanha uma maquinação desconhecida preparando a sua duração, as suas modulações, a sua cadência, a sua estadia. Ela não lhe passava despercebida e os olhares, forçosamente esparsos, denunciavam, pela proeminência da sua qualidade, o susto, o inesperado. A possibilidade com suas asas informes inquietava duas pessoas até então desencontradas, separadas, problematicamente sós. O interesse redobrava a emoção e o silêncio catalizava o entorpecimento que só quem o vive pode comunicar sem palavras, sem gestos, sem nada. Como se algum deus se apossasse do fascínio de duas pessoas despreparadas para tal confronto e então, com sarcasmo, as colocasse a mercê de um sentimento primitivo, anterior ao pensamento, desconcertantemente manifesto.


II

O encanto emudecera-os e ricamente preenchidos de nada engatilhavam lembranças minuciosas sobrevalorizadas pela emoção de uma memória, uma música tocada de saber, uma continuidade anunciada desdobrando-se em palpitações solicitantes de uma morada, uma habitação apropriada para a experiência de um colapso, uma perda próxima do controle envolvendo sofrimentos e danos, riquezas e tronos. O novo hospedeiro habitaria doravante ambos os corpos, misturando-se com as individualidades de cada um para gerar situações de espanto, de jogo, de vida. Aquela tez mediterrânica de andar indolente e olhar atento provocava-a, deixava-a em suspenso, provocava-lhe a perda da objectividade das coisas. Por instantes esqueceu a funcionalidade da caneta, da cadeira, da roupa que vestia e das soluções quotidianas na sua relação efectiva com o mundo. Um frio não meteorológico, não proveniente das condições físicas, a invadira promovendo-lhe uma sensação de transporte involuntário. Sentia-se perdida, não funcional, tolamente apaixonada por um futuro que emergia numa colecção de decisões incertas aproximando-a de um sentimento de colapso, uma perda de identidade, um instante de morte.
As mãos inertes caíram sobre a mesa de fórmica barata num gesto religiosamente doado e bem perceptível. Ele tornou a olhá-la e desta vez teve a certeza de uma totalidade que despontava fragmentariamente nítida. Muda, paralisada, com o olhar desconcertadamente desviado ela escrevia-lhe na imutabilidade das horas um testamento afectivo. Ele desarmava-se da sua vivência acumulada e precisava reinventar-se para encontrar a altura do instante diante. Isto implicava uma actividade em parte conhecida, mas na sua porção importante completamente nova e assustadora. Improvisava um sentimento de posse recriando-se como o possuidor à medida da presa. Perdia-se e continuava o seu discurso duplo, um suportado pelos significantes sonoros e outro penetrante, aparentemente mudo, promovendo qualidade ao resto. Sentia-se absolutamente vivo esbanjando o que gostaria de poder controlar e reter. Não queria errar os movimentos ou descontrolar as consequências e acabava por afrouxar a lógica de construção dos conceitos. Ela captara-o e propunha-se raptá-lo para longe de qualquer possibilidade arisca de escape, percebendo a inteligência hábil, camaleónica, a inteligência que por sua vez julgava poder auscultá-la. Inconscientemente desejava ser raptado, amordaçado, tratado ao gosto da assaltante convidada.


III

Lá fora o espaço aéreo estava composto por nuvens cortadas por andorinhas em revoada, o vento soprava alto com orgulho nímbico anunciando a possibilidade de chuva próxima. O sol opunha-se à lua que embora frágil permanecia na abóbada ao meio-dia, numa confluência de fenómenos perceptíveis ao olho humano, embora naquele momento só ele se encontrasse voltado para o cenário, mas alheio a este, pois que absorvido pela trama dos acontecimentos. Ela notara a confluência de imagens a que ele se sujeitara e desajeitadamente sentiu-se no centro do universo, enquanto ele dava passos lentos, estudados, calculando a distância na proximidade material aflitivamente indisponível. Encontrava conscientemente o canto em que pudesse afastar-se para sofrer a atracção em novo ângulo e suspeitou da possibilidade de alguma macumba. Felicitou o próprio destino e esboçou um sorriso de Alexandre, o Grande. O silêncio dominava as testemunhas imunes ao acontecimento destinando-as apenas à paisagem. A imaginação forjava um único campo magnético que a ambos protegia confluindo, indiferente ao cansaço, com as acrobacias do interesse. Doravante a vida ganharia uma nova textura a partir de uma tessitura que a quatro mãos conquistava o tempo oportuno das sensações variegadas revolvendo o mais próprio de cada um deles. Às vezes tinham que se olhar um ao outro, promovendo a cumplicidade no desconhecido e tudo se tornava explícito e aos poucos aprendiam a reverenciar o anunciado vencedor. As palestras sucederam-se com regularidade e esperar os esparsos momentos de tocarem-se com as retinas era a regra dos dias, escamoteando a sondante omnipotência em encontros aparentemente casuais. Facto que resvalava para regiões misteriosas da esfera entre o profano e o sagrado e os dotava de uma atmosfera em crescente poder que ora se assumia enquanto distinta, ora enquanto caótica. A comunicação pelo silêncio era mágica e a palavra começava a estabelecer-se em fragmentos de espanto partindo do sensual e alcançando o filosófico. As personalidades ofereciam seus contornos e os primeiros passos para o conhecimento disparavam-se com teoria e divindade doadora de sentido, que sem conceito de fim, sem significado, se sustentavam no belo. A imaginação disparava na busca das formas fugidias sendo impossível estabelecer qualquer definição. E esta impotência da razão transformava-se em ternura exótica. Não se despediam, debandavam, não sem antes se espreitarem com o sistema nervoso em frequências desencadeantes da acção. O desejo era de unidade, mas os receosos passos contrariavam o alado e rechonchudo deus que manejava impunemente o seu arco e flecha.

IV

Os dias passam a voar e os apaixonados em vésperas de si próprios nem sempre sabem fazer atrasar o tempo e moldá-lo às suas disposições, pois entre o amor e a vida pode haver muito espaço e os contratempos têm arestas promotoras de outros atritos e nós que tomam proporções indesejáveis pela ausência, que deixa de fora o toque das fracções do abraço, do beijo. Cada partida representava uma demora de sofrimento esgarçado, sem direito a despedida, enquanto fingiam, um ao outro, nada levar consigo de importante enquanto esparsos olhares traíam a mentira quase adolescente e pouco sustentável, no dobrar do lance de escadas que enrolando-se para a esquerda, ao modo de uma serpente, fugia de um destino que mete medo. Mais adiante olhou por um ângulo inferior em degraus obtendo sobre si paralela visão de pernas sob calças que avançavam sobre o presente. Recompondo a sobriedade terminava os degraus com passo lento, mostrando o pescoço tenso, a cabeça inclinada, pretendendo alcançar, o melhor possível, o nível do solo ainda que com determinada frustração prolongada. Ela examinava o que acontecia sem compreender a violência impregnante da distância, da força contrária ao óbvio, contrária a sua movimentação natural que a convidava a segui-lo, a simplesmente caminhar a seu lado, como se isso fosse lógico.
Restava-lhe a visão dos pardais cruzando o pátio em voos baixos à procura de farelos e esses chamavam-lhe a atenção perdida no vazio da perplexidade muda. Observava o alarido das crias em sua aprendizagem de autonomia. A responsabilidade das mães pássaro era o único espectáculo possível, e abstraindo-se de tudo o mais à sua volta, continuava a fixar-se nos pardais que se movimentavam sem a hesitação de comer ou levar no bico. Levar no bico a migalha encontrada, depois de tanto procurar na actividade semi-circular da cabeça, era o que se permitiam os adultos que cuidavam ninhos, sendo imediatamente imitados pelas crias. A ansiedade encontrava um ancoradouro sólido e distribuía o cansaço, trazendo o peso da melancolia arrastada na lentidão do tempo, socorrida apenas pelas ideias estéticas que em letras de forma preenchem o papel, na ânsia de concertar o momento disperso. A literatura encontra-se com a filosofia e na magia dos dedos obsessivos no teclado, enquanto ele o testemunha, ao passar despercebido, deliciando-se na concentração dela, uma música se despeja em capítulos e o sentimento toma novas formas apertadas, como na contenção própria da arte dos bonsais.

V

Parada, notara uma sombra que atravessava uma vidraça. Ele olhava-a há alguns segundos e ela por acaso descobria seus aposentos literários e espantando-se com a quantidade de reinos desconhecidos no seu percurso quotidiano. Há muitos anos que frequentava aquele lugar, ocupando com naturalidade aquele espaço, com o tempo tão seu, e no entanto não se lembrava de algum dia o ter visto, e perguntava-se se ele ali agora, enquanto sombra, já a conheceria ou não. Não sabia o que pensar sob as restrições que acompanham cada vida em particular, que nada mais é que uma pequena clareira movimentando-se numa escuridão. Ter ali passado muitos dias e durante muitos anos não os fazia velhos amigos. Como se a vida, enquanto reservatório, guardasse sempre e no mesmo lugar surpreendentes novidades, coletes salva-vidas e botes contra o iminente tédio. O amor a que se aspira no desenrolar de uma paixão é uma ponte. Numa das vezes em que se encontraram diante de si próprios pela presença do outro, inconscientemente padeciam de uma sensibilidade já acumulada, treinada na leitura de pequenos gestos e sob qualquer variação de atitude uma modificação fisiológica inesperada desencadeava uma nova expectativa, desconcertante, promotora de embaraço. Deu-se uma recolha mútua, de parte a parte, enquanto ganhavam tempo para integrar novos dados que a natureza oferece como um bónus aos que devem entregar-se em paixão, no consumo combustível dos corpos, onde a química justifica a sua existência. A confusão ia-se dissipando em momentos de clareza, e a necessidade solidificava-se na consciência do estado actual em que a fruição chamava os elementos do desejo. Eles a nada sabiam dar início, olhando-se simplesmente, sem poder ainda dissolver a inadequação de uma temporalidade anunciada. Haverá uma causalidade nas impressões que empurra o momento futuro para o presente actual e o manipula, brincando com uma maldade singular com aquilo que indefeso pede cuidados para crescer robusto.

VI

Ele gostava de provocá-la até ao ponto de aproximar-se e olhá-la demoradamente nos olhos, ela absorveu o olhar devolvendo-lhe um sorriso de comunhão. Ele suspirou. Ela encontrou uma maneira de informá-lo da frequência do pensamento, mas ele não esteve a altura da exposição, da situação. A complexidade potenciou-se e todo o aprendizado fora mandado para a reciclagem e começar do zero dificilmente se harmonizaria. Os momentos degradaram-se e a segurança perdeu a sua almofada. Ele forçava uma comunicação quase desesperada mas mesmo alcançando seu receptor nem por isso o retirava de um buraco da escura emoção onde caíra.
A beleza partira-se aos bocados e num gesto de oração ela apanhava os cacos e submetia-se a uma remissão simbólica ao perdido.
Tudo se tinha modificado e a estranheza voltava-se para o exterior inóspito. A escuridão era desconsoladora e promovia um duro questionamento que se impunha como uma acusação num tribunal. Ninguém sai incólume das forças secretas da natureza, estas exercem os seus poderes de modo tal que promovem uma anarquia no sistema fisiológico elementar do organismo. Ela não foi excepção. Um dia teve uma paragem de digestão, consequência de emoções mal administradas que ao sabor de energias estranhas acarretam danos somatizados pelo instante arrogante. Passou a ter medo de comer mas nem por isso perdeu muito peso, comia pouco e amiúde pois a fome e o sem sentido da situação devoravam-na. A recuperação, sendo lenta, dá tempo ao pensamento para a configurar em melodia criada na ausência. Sonhara com a fusão total, pela fricção do tacto, a sofisticação do olfacto, o prazer do paladar autenticado na visão redentora, ao som de tambores nalgum terreiro de candomblé esquecido na memória. Noutro dia, perdida a capacidade de atenção, enquanto atravessava uma avenida movimentada, não vendo um buraco, torceu um pé. Vinha distraída a pensar nele e o momento da torção provocou uma dor violenta levando-a ao chão, com dificuldade soergueu-se, com um carro à frente, alcançando a calçada sentou-se num banco de jardim. Pulando sobre um único pé, pôde parar e tentar avaliar a situação. Mas a dor intensa escureceu-lhe os olhos e quando deu por si estava caída com a cara agarrada as pedras, acossada de súbita vergonha levantou-se ainda tonta de volta para o banco. Suspeitava da brevidade do desmaio, alguns segundos, pois ninguém a rodeava, e permaneceu ali mais um tempo, como quem aprecia a paisagem, bebeu água e dirigiu-se para o autocarro. Pensou que talvez na sua primeira encarnação, teria vindo ao mundo na pele do primeiro filósofo, Tales, que distraído, caíra num buraco, facto que tornou a sua criada famosa por rir-se do amo. Haveria ali alguma criada? Procurou-a à sua volta e ponderou que a fama desta a esgotara, que teria perdido a razão da sua existência. Hoje talvez se ria de outras coisas, como do ordenado! Ele, por sua vez, também se atarantava nos gestos mais corriqueiros, como aconteceu certa vez, quando fechara a porta de casa com a chave dentro e, atrasando-se para os seus compromissos, decidiu resolver a situação de um modo insólito. Tocou à campanhia do vizinho de baixo e explicando-lhe a situação, obtivera a permissão para, através da varanda, saltar como um macaco para a sua. Movimento que punha a prova a capacidade de seus músculos, pois com um pulo, segurava-se à sacada da sua casa, mas ainda faltava fazer subir o seu corpo, o que implicava força. Com a sua habilidade conseguira o seu intento recuperando a chave e gostaria que ela estivesse presente para testemunhar a sua coragem, a sua flexibilidade, e, orgulhoso da sua destreza, dedicava-lhe o sucesso.
Foi tudo o que a natureza lhes ofereceu: contratempos. Ele ofereceu-lhe macacadas a bel-prazer. Ela não sabe o que lhe deu. Sabe apenas que ainda não alcançaram o tempo da delicadeza. Hoje passam um pelo outro como dois desconhecidos.






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