Filosofia,literatura e outros...

Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

segunda-feira, junho 18, 2007

ANTROPOFAGIA TROPICAL

VI

Ele gostava de provocá-la até ao ponto de aproximar-se e olhar demoradamente nos olhos dela, olhar que ela absorveu devolvendo-lhe um sorriso de comunidade e satisfação que nele promoveu suspiros. Ela encontrou uma maneira de informá-lo da frequência do pensamento, mas ele não esteve a altura da exposição, da situação. A complexidade potencializou-se, e todo o aprendizado fora mandado para a reciclagem e começar do zero o que, de facto, já era intenso, dificilmente se harmonizaria. Os momentos degradaram-se e o sentimento crescente perdera a almofada da convicção feliz. Ele forçava uma comunicação quase desesperada, que de facto alcançava o seu receptor, mas não o retirava de um buraco da emoção escurecida pelos acontecimentos. A beleza partira-se aos bocados, e num gesto de oração, ela apanhava os cacos e submetia-se a uma remissão simbólica ao perdido. Tudo tinha se modificado e a estranheza voltava-se para o exterior inóspito. A escuridão era desconsoladora e promovia um questionamento duro, não desejado, que se impunha, como uma acusação num tribunal.
Ninguém sai incólume das estonteantes forças secretas da natureza. Estas exercem seus poderes de modo tal, que promovem uma anarquia no sistema fisiológico elementar do organismo, a que ela não se tornou imune. Um dia teve uma paragem de digestão, consequência de emoções que ao sabor de suas energias mal administradas acarretam danos somatizados pelo instante arrogante. Passou a ter medo de comer, mas nem por isso perdeu muito peso, comia pouco e amiúde, pois a fome junto com o sem sentido da situação a devorava em inquietação desveladora de uma direcção fluida que pudesse vir a se apresentar. A recuperação, sendo lenta, dá tempo ao pensamento a se configurar numa melodia promotora de uma fusão mediada na saudade, na carência. Sonhara com a fusão total, pela fricção do tacto, a sofisticação do olfacto, o prazer do paladar autenticado na visão redentora, ao som da actividade de tambores de algum terreiro de candomblé esquecido na memória. Um outro dia, e desta feita sem a mínima capacidade de atenção proveniente da sequência afectiva de contratempos, não vendo um buraco, torceu um pé, ao fim de atravessar uma avenida bem transitada. Vinha distraída a pensar nele e o momento da torção provocou uma dor violenta levando-a ao chão, que com dificuldade soergueu-se, com um carro à frente, e alcançando a calçada sentou-se num banco de jardim. Pulando sobre um único pé, pôde parar e tentar avaliar a situação. Mas a dor intensa escureceu-lhe os olhos e quando deu conta de si estava caída com a cara agarrada as pedras, e acossada de súbita vergonha levantou-se ainda tonta, de volta para o banco. Suspeitava da brevidade do desmaio, alguns segundos, pois ninguém a rodeava, e permaneceu ali mais um tempo, como quem aprecia a paisagem, bebeu água e direccionou-se para o auto-carro. Pensou que talvez na sua primeira encarnação, teria vindo ao mundo na pele do primeiro filósofo, Tales, que distraído, caíra num buraco, facto que transformou sua criada famosa pelo riso ao amo. O que teria acontecido à criada? Procurou-a a volta e ponderou que a sua fama a esgotara, e teria perdido a razão da sua existência. Hoje talvez se ria de outras coisas, como do ordenado! Ele, por sua vez, também atarantava-se nos gestos mais corriqueiros, como aconteceu certa vez, quando fechara a porta de casa com a chave dentro e, atrasando-se para os seus compromissos, decidiu resolver a situação de um modo insólito. Tocou a campanhia do vizinho de baixo e explicando-lhe a situação, obtivera a permissão para, através da varanda, saltar como um macaco para a sua. Movimento que punha a prova a capacidade de seus músculos, pois com um pulo, segurava-se à sacada da sua casa, mas ainda faltava fazer subir o seu corpo, o que implicava força. Com a sua habilidade conseguira o seu intento recuperando a chave e julgava pertinente que ela estivesse presente e pudesse testemunhar a sua coragem, sua flexibilidade corporal, e orgulhoso de sua destreza, dedicava-lhe o sucesso. E fora tudo o que a natureza oferecia aos falsos amantes: contratempos. Ofereceram um ao outro macacadas, desgostos e ciladas. Hoje continuam dois desconhecidos.
FIM

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Maria, gostei muito do antopofagia tropical. Vou editar o texto, da melhor forma que conseguir para o colocar na callema. Depois mando-te o resultado final, para ver se aprovas.
Beijos,
Rui Alberto.

m.salles disse...

Olá Rui! Com que então gostaste do Antropofagia! Uns se divertem enquanto outros despedaçam-se. Alguém disse que ser poeta é comercializar as emoções...Por enquanto ainda não ganhei nada com isto!