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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

AINDA SOBRE MACHADO DE ASSIS

Qual a especificidade de um defunto- autor?

Brás Cubas faz questão de afirmar que não é um autor- defunto e sim um defunto -autor. Ou seja, sua obra foi escrita depois de morto. A grande vantagem de escrever um livro, nomeadamente as memórias, depois de morto é que já tem a história completa, o sumo do sentimento e as alturas do raciocínio que operou em vida. O Todo Analítico, diria Kant, já está totalizado e as formas da intuição pura, o espaço e o tempo, já não desfrutam das suas qualidades anisotrópicas, de mudarem de propriedade consoante o lugar que ocupa e consoante o momento específico. Tudo já está configurado e as memórias podem ser a sua própria essência, o seu próprio sumo, como diria Brás, e não apenas um diário.
Para além disso, o modo da relação do autor com a escrita é muito própria e numa liberdade sem igual. Se por um lado, pode fazer as mais desconcertantes confissões, pois encontra-se em relação de indiferença, por outro, com seu estilo, não espera admiradores vulgares. Se o leitor só compreende um modo literário escorreito, linear, a ironia do escritor oferece-lhe um estilo de um ébrio, que tomba para a direita, para esquerda e cai. Capítulo LXXI, O senão do livro, onde ele admite o arrependimento de escrever, embora o facto de escrever o distraia da entediosa eternidade. Admite que o livro é enfadonho, mas o maior defeito do livro é o próprio leitor, por razões apontadas. Sua escrita ébria ameaça, resmunga, urra, gargalha e escorrega… No capítulo IX, Transição, especifica que o livro tem as vantagens do método, sem a rigidez do método, ou seja, o melhor do método é tê-lo sem gravatas nem suspensórios, e sim à fresca e à solta. E vai mais longe na comparação: como a eloquência, há uma genuína e vibrante e outra tesa, a primeira é feiticeira e natural a outra engomada e chocha.

A liberdade é tamanha que o permite começar pelo fim, pelo seu óbito. Tendo a totalidade da sua vida, tem a forma, e com esta, com a habilidade de um volatim, figura utilizada para expressar uma ideia fixa que move-se insesantemente até se configurar numa existência e descodificada, tem o poder de comunicar.
Adverte aos leitores que não vai explicar o seu processo de escrita a partir do outro mundo, seria muito complicado, apenas menciona as contracções cadavéricas de que padece . Sua indiferença de morto contrasta com o entusiasmo do vivos, que não podem desdenhar completamente e por isso não podem desfrutar de uma ironia radical.
Resta-lhe apenas um ofício, o de escritor, a inteligibilidade que isto requer, num esforço de escrever do outro lado do mundo. Há sim uma decisão de escrever, uma iniciativa que é uma causa responsável. Um livro é um ente não natural e seu princípio de produção não está nele próprio, é o produto de uma idealidade do autor, da vontade de fama, e sendo um morto e sem filhos, não diria que uma necessidade de sustentar a família. Para além disso Brás era rico.Uma árvore nasce de uma semente, um livro, por instância nasce de uma ideia, um esforço de escrita.
A morte de Brás deu-lhe o que ele não obteve em vida, a fama. Recebeu do pai o gosto do arruído. Seu pai, promoveu no rapaz o desejo de nomeada. Este desejo está presente na escolha do seu nome, um forçado entroncamento no nome de um sujeito que fundou a Companhia de São Vicente que ficou na História, que por acaso tinha o mesmo apelido, para além dos esforços em convencer o filho a estudar, casar e ser político.
Estudou em Coimbra e confessa não ter se dedicado muito, ficou-se pela exterioridade do conhecimento. Não casou com a mulher pretendida, tendo sido antecipado por outro, o Lobo Neves, com ambição de águia, enquanto ele compara-se a um pavão, mais bonito, mais inteligente,…, mas menos penetrante nos seus objectivos.
Não chegou a ministro, não teve filhos, visto ter tido o ímpeto, sob a descrição do sentimento de um fluido misterioso. Foi amante da mulher com quem iria se casar e amou-a de modo superficial, enaltecendo sua beleza física, notificando e congratulando-se com o seu pico.
Sem a força de um amor mais profundo, era sua especialidade ficar-se pela exterioridade das coisas, só se encontrou apaixonado tardiamente, depois das infinitas voltas insinuadas nas valsas. A pretensão de infinitude da valsa o remetia para a infinitude do amor de Virgília já de possibilidades finitas, visto já estar casada com outro restando-lhe a possibilidade de serem amantes.
Seu amor de nomeada, confesso no capítulo II, sob a criação de um medicamento que viria actuar contra a dor que assola a humanidade, um emplasto contra hipocondríaco, advém do facto de ser um melancólico consciente. Chamava a doença uma flor amarela, uma espécie de vento morno nem forte nem áspero, mas abafadiço, que abate e dissolve o espírito. Uma flor que o depõe numa garganta, entre o passado e o presente. O medicamento curaria a dor da humanidade e a própria, através da fama, seu nome público, a inscrição dele nas caixinhas, nos lugares… Uma cura particular através de um movimento de alcance universal.
Por ironia do destino Brás Cubas morre de um pneumonia mal curada, enquanto só tinha olhos e tempo para a sua ideia. É no outro mundo, sob a iniciativa de escrever, que alcança a fama. Poucos conhecem o Brás Cubas, fundador da Companhia de São Vicente, mas muitos conhecem o Brás Cubas de Machado de Assis, tido como o maior escritor brasileiro.
Em vida, teve que lidar com as contingências, sua própria finitude, ter corpo, o elemento que prende, que puxa para baixo, que estorva, que choca-se com outros e resiga-se a uma ordenação… Enquanto defunto- autor, sua liberdade permite um estilo debochado, irónico, onde o elemento do humor toma a dianteira e envolve sem mistificação o interior do escritor. Não ter o que temer, poder fazer as confissões é uma possibilidade de liberdade sem limites. Confessa que o emplasto daria ao mundo uma solução e este lhe daria de volta a estima e o lucro. Ele, por ele próprio desfrutaria mais do prestígio da fama. No seu delírio pede à Pandora que o deixe viver, viver simplesmente, não quer morrer. Não chega a ser um epicurista, pois para Epicuro, a vida é um bem, desde que a morte não preocupe o sujeito, que a morte não seja um mal, pois esta é ausência de sensação. Em última instância a morte não é executável, pois quando ela vem o sujeito nada sente, se ainda não veio não tem que se preocupar com ela, pois é do âmbito da possibilidade. A possibilidade não deve afectar a felicidade.
Não é um aristotélico, pois está de costas voltadas para a melhor possibilidade, possibilidade extrema de vida para o homem, a vida em busca da sabedoria que o remete para a contemplação.
Brás Cubas é preso de FILONIKIA, amor ao poder sobre outrem e FILOTIMIA, amor à fama, à honra? Não digo que também seja preso de FILODERKEIA, pois esta sede descreve melhor sua primeira relação, Marcela. Brás é rico e obter lucro com o emplasto era contingente e não o almejado.
Aquiles, visitado por Ulisses, na Odisseia quando vai ao Hades, confessa o desejo de não ter morrido cedo, abdicando de seu heroísmo. Também Ulisses, na República de Platão, por ocasião da teoria da migração das almas, tendo a possibilidade de voltar a vida, opta por vir a ser um homem comum.
A vontade de fama advém de uma frustração, e, Brás Cubas é um frustrado, uma bandeira à meio pau. Não chega aos seus objectivos, não chega ao âmago da coisas. Sua possibilidade de defunto- autor outorga-lhe a fama, aquilo que tem direito, aquilo que durante sua vida esteve latente mas não veio à manifestação.

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