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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

terça-feira, abril 03, 2007


§1. O mito enquanto função da poesia tanto na tragédia como noutras formas literárias.
Para se compreender ou tentar auscultar o dionisíaco na tragédia grega sinto a necessidade de introduzir o leitor, não o iniciado, mas o interessado em geral, à implicação dele com os vários momentos da realidade grega no seu dia-a-dia, fonte do homem comum e fonte do poeta, que é o homem comum, por um lado, mas não só, já que é aquele que escreve o que vê, que sente e quer reter o momento presente, o momento que passa, enfim, expressar.
O que subjaz e precede a poesia, pois remete para uma origem mais remota, é o mito, este deixa de ser uma esfera exclusiva dos deuses e heróis e entra no quotidiano dos gregos, pela rememoração de um acontecimento heróico que é o equivalente a uma façanha que agudiza, no homem, o poder de apropriação de uma coragem ou uma atitude invulgar, que dará espaço para uma modificação do sujeito em relação à sua própria vida. O mito é também uma forma velada de dizer verdades fundamentais e de apresentar o real de modo a perpetuar um princípio de transformação naquele que com ele convive, que o escuta ou o vê representado. O mito tem um sentido que vai muito além do imediatamente expresso, alcançando uma relação do sujeito com o que é profundo e oculto, podendo interferir na esfera das reacções fundamentais, como a própria actividade do sujeito e a esfera da vontade, do querer… A mitologia grega apresenta-se como um conjunto de narrativas maravilhosas de feitos de deuses e heróis da Grécia antiga e propagou-se entre os séculos IX e VIII a.C.
O mito opõe-se ao logos, pois um é da ordem da imaginação sob o sopro da fantasia, mas completa a linguagem neste próprio entrelaçamento com o logos. Por exemplo: A palavra junta-se com outras para formar uma síntese que determinará o sentido e para desocultar algo, trazer algo à presença. Como diz Aristóteles
[1], o substantivo ligado ao verbo traz à lucidez algo determinado, antes oculto, pela coincidência e dissociação operada na síntese, que por sua vez vai operar uma nova síntese entre a lucidez e o discurso, falado ou pensado e, neste processo, o pensado volta-se para outras instâncias mais profundas concentradas nos mitos. Este processo pode continuar a operar-se na vida de um grego e então as constantes sínteses penetram a existência de um grego tornando-a exuberante. O logos é o raciocínio e pode pretender convencer, podendo ser verdadeiro ou falso, podendo querer, deste modo, algo para lá de si, um engodo ou a verdade. O mito não tem outro fim senão ele próprio. A lucidez, pela articulação entre pensamento e linguagem, cria o mito e serve-se dele para compreender a si própria, por um envolvimento que retorna e permite o auscultar da lucidez em instâncias mais profundas. A crença neles é um acto de fé e diz respeito à sua beleza, sua força no maravilhoso e verosimilhança. O mito atrai todo o irracional que fica de fora do pensamento humano, deste modo encontramo-lo impregnando nas actividades do espírito habitável fortemente pela arte. O mito é algo de essencial para um grego, tão essencial ao pensamento deste como o Sol ou o ar que permitem a própria vida, para falar como Pierre Grimal[2]. O mito tem uma vida própria que advém desse seu entrelaçamento entre o coincidente e o dissociado, contradição que gera fertilidade de pensamento que cria vida. A vida própria do mito circula entre a razão, a fé e o jogo, articulando um modo de conhecimento susceptível de libertar o desconhecido que habita o humano e o move, deixando à parte racional um pequeno âmbito de manobra que se quer dominante, mas que acaba por sucumbir porque dirige o desconhecido, portanto não dirige ou o faz por pouco tempo e até certo ponto. Graças ao mito os gregos deram vazão à reflexão e graças a ele a poesia permite-se transformar-se em sabedoria. O poeta é aquele que capta e escreve primeiro, registando desta forma algo que por ele passa, que, se importante, volta a ser usado por quem lê. O mito diz respeito à composição dos actos e é como que a atmosfera essencial, a alma da tragédia. O talento do poeta está em utilizá-lo com a marca da sua genialidade. O mito tem um longo percurso a percorrer e um longo tempo, não nasce como um conjunto organizado, mas cresce ao acaso, como um ser da natureza. Os gregos tinham mitos para a criação do mundo e mitos para o nascimento dos deuses e foi um poeta, Hesíodo[3], o primeiro a se preocupar em reuni-los. Antes dele, Homero[4] enriqueceu e educou os gregos nas suas narrativas heróicas, primeiras fontes míticas e literárias do pensamento ocidental. É de Homero que o homem grego herda a divisão do mundo em dois cenários onde o superior dá sentido e significado ao que ocorre no mundo inferior.
O carácter essencial do mito é o seu fraccionamento, recobre muitas realidades da vida de um grego e, de facto, é o resultado de uma longa evolução das aspirações, medos, heroísmos que jorram da natureza da alma humana. O mito enquanto imitação de uma acção na tragédia, deve imitar, segundo Aristóteles, as acções unas e completas com acontecimentos em conexão tal que tenha uma relação directa com o todo, a unidade da tragédia. O mito contém uma plasticidade de se moldar à vivência humana de modo tal, que pode se transformar numa epopeia, numa tragédia, ou outro género literário, e também numa revelação mística. Os mitos alcançam vida própria permitem-se variações e não raramente, entre os gregos, ganham um estatuto de um organismo com pulsações e metamorfoses incessantes. Imitar é congénito no homem
[5] e no próprio vocábulo imitar está implicado o mito assimilado. E é segundo Aristóteles por imitação que se apreende as primeiras noções e nela há comprazimento.


[1] Aristóteles, De Interpretatione
[2] Grimal, Pierre, Mitologia
[3] Hesíodo, Teogonia
[4] Homero, Ilíada e Odisséia
[5] Aristóteles,Poética,IV-4

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