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Acerca de mim

Jornalismo U.F.Bahia/ Filosofia U.N.Lisboa/ Campeã Brasileira de Vela(Laser)/Nasci no Brasil(Bahia). Morei em Salvador, São Paulo, Cambridge, Ibiza e Lisboa.Autora de"O Caminho do Mar", Ilustração: Calasans Neto, ed.P555, Salvador-Ba,2004. Tenho três gatos:Homero, Bocage e Clarice(Lispector). Signo de Touro, ascendente em Leão, lua em Peixes.Doze e meio por cento de Sangue Índio(BR), a melhor parte de mim.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

O que é a ironia?

Segundo o Conceito de Ironia de Kierkgaard, há muitas formas de ironia. Podemos isolar três, para não falar da ironia romântica: a ironia absoluta, perigosíssima, pois só o ironista se apercebe dela, pois dá ao interlocutor a impressão de uma atitude séria. O ironista fecha os canais de comunicação mantendo uma aparência absoluta de comunicação. É o maior desprezo que alguém pode dar a alguém. E se isto é com todos, chega-se àquilo que Kierkgaard chama demoníaco.
A ironia de salão é a mais inocente de todas. Dizer à serio o que é para brincar ou brincar com o que se deve levar à sério. É semelhante ao humor, mas este é mais profundo e complexo que a ironia. A outra possibilidade é a ironia em suspeita, pois nela não há um indício claro, o que acontece nos diálogos platónicos. Quando há uma réplica irónica o ouvinte é levado, em princípio, a reavaliar o significado do seu enunciado. Suspeita do seu sentido e experimenta-se uma distância do sujeito em relação ao sentido, a validade e o peso. Quando se argumenta lança-se uma âncora para se capturar o outro, para vergá-lo.
Tornar-se irónico é uma possibilidade para o interlocutor. Se o interlocutor é sério é capturado, mas o ironista também, caso tenha se esquecido de alguma alternativa, e, então, terá que se retratar. O ironista é livre, mas o sério tem do seu lado verdades transcendentes e sofre. Kierkgaard diz que a seriedade é algo tão sério que o falar dela é já falta de seriedade. Trata-se de uma relação fixada com o conteúdo. E o sujeito não está livre do conteúdo. Ele está exposto à Humanidade.
A ironia é fundamental para mostrar o que é ou não sério. Se dois ironistas estiverem a dialogar, ao tocarem em algum assunto sério, algum dirá: "com isso não brinco". O ironista quando livre em relação a si próprio é admirável, alcança o humor.
O núcleo da ironia é o nada, pois o ironista não precisa de teses, se não tiver mais argumento ri-se.
Sócrates tem uma ironia radical, pois suspende as teses. Sócrates tem uma relação peculiar com a sabedoria. Para ele só há um bem a sabedoria e só há um mal a ignorância. Isto o distingue de Pirro e de Diógenes, o cínico. Santo Agostinho introduz que é possível saber e fazer o contrário. Sócrates diria que ainda não sabia.
Sócrates toma a sua ignorância como um destino. O oráculo aponta-o como o mais sábio. Isto para ele tem um sentido existencial. Ele não prega a sua ignorância, não faz exposições. Ele executa a ignorância, não é um professor, ele pergunta, testa.

O método de Sócrates

Interessa a noção de interrogação e ironia. O método de Sócrates tem dois aspectos fundamentais: o diálogo e a interrogação, meios indispensáveis para o alcance da lucidez. Os Sofistas, pelo contrário, expõem e respondem. Para Sócrates o diálogo é uma investigação de perguntas e afirma que sem diálogo não consegue pensar. O diálogo é um sistema de forças, onde o objecto do diálogo sofre puxões, sofre agressões.
Interrogar é uma relação do indivíduo com o objecto em questão e com outro indivíduo. Na exposição, pelo contrário, há uma espécie de captação total das propriedades dos objectos, não há investigação. Compõe-se linguisticamente um conjunto de determinações e não há, propriamente, uma relação desperta com os conteúdos. Na exposição o assunto está como que dominado.
Há uma diferença entre expor e comprender no sentido forte. Na compreensão há uma espécie de determinação a priori e não um como que. Quando se houve uma exposição, pode-se receber o ouvido como simplesmente recebido ou como um recordar. Só o recordar é a priori. Recordar é qualquer coisa que aponta para a inutilidade dos apontamentos. Estes servem apenas como lembrete.

Usa-se conceitos para exprimir um conceito. Pode-se não perceber o exposto ou o discurso. Além disso os conceitos com que se foca o conceito podem estar adormecidos. Quando se é interrogado, é-se obrigado a rever o tipo de relação que se tem com aquilo que estava a falar. A interrogação altera a relação com as determinações. Estas deixam de estar nos bastidores e passam a estar à frente. A pessoa é obrigada a retorcer o discurso. Neste momento perde-se a posse do objecto, e então passo a procurá-lo. A interrogação ajuda a examinar algo tido como sabido . Fora da interrogação há o discurso da vida.
O sujeito, pela interrogação, perde o objecto e ele resurge de forma completamente diferente. Santo Agostinho disse algo assim sobre o tempo: Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, não sei. A interrogação revela o nada. Revela autenticamente o tipo de detenção que tenho do objecto. Há um maior confronto quando a pergunta vem de fora, pois tendemos a condicionar o auto-exame, somos brandos connosco mesmos.
A interrogação socrática visa apontar a ilusão de posse e a fixação de conteúdos subjectiva. Procura-se por o objecto numa estranheza em que ele habitualmente não está. Procura mostrar a não posse mantendo a tensão para o objecto. A ironia não é um processo de inteira destruição, deixa tudo em aberto. Pretende mobilizar o sujeito para que investigue as coisas que habitualmente tem por pressupostas e que são questões fundamentais.
Ser irónico é complicado, pois é uma luta, vendo que está capturado e tem de dar um passo atrás. O resultado do processo irónico não é um resultado negativo, como o do céptico. É um não resultado, pois é uma suspensão. A ironia demonstra, objectivamente, que as coisas não são facilmente capturadas. Falar com um ironista pode ser impossível. A ironia é um convite a auto-ironizar e tornar-se livre. A ironia socrática mantém a tensão para a idealidade. Ataca a ilusão. A ilusão não é ignorância: A ignorância pode ser superada pelo aprendizado. A ilusão torna impossível a sabedoria entrar. O sujeito pode ainda estar iludido com a sua ilusão. Sócrates ataca a ilusão. É preciso assegurar o ponto de onde se parte. E o fundamental é a liberdade do sujeito relativamente às determinações mundanas. Um ponto fixo que dissipe a confusão constitui-se a partir da ironia. O ponto fixo é o primado da subjectividade. A ironia afirma que a fonte do sentido tem de estar na relação do sujeito com os conteúdos e não na consideração anónima e abstractas deles. O humano é movimento e o sentido está no movimento e não no resultado. Interessa se o movimento está fundamentado ou não. A solução é ética. Se anulo o fim concentro-me na acção. É como sentir o impulso para estudar mesmo que não haja teste. Estudar muito, ainda que a nota venha a ser baixa. Mas, de facto também queremos resultados. O resultado é o fim, que é abstracto. Os meios são palpáveis, e podemos executá-los e se o fim for bom tanto melhor. Na ética o que está em causa é a acção. O ponto de vista estético é mais fácil de executar, o humano tem dificuldade de se sustentar no ponto de vista puramente ético... Embora, por outro lado também a pura Estética se apresente um tanto quanto impossível de ser executada. Quem é que está preparado para integrar toda a miséria e sofrimento num ponto de vista estético?Mas é necessário assegurar o domínio da projecção de sentido. De facto a ironia é algo onde não se pode estar, embora toda a vida autêntica comece por aí. A ironia expulsa o distante e coloca a questão do próximo em carne viva, mas deixa a questão indeterminada. Sócrates vai-se embora.

Agradecimentos ao professor Nuno Ferro pelas excelentes análises nas aulas de Antropologia Filosófica.

2 comentários:

LivrePensador disse...

Como dizia o outro, a ironia é um peixe que tem de ser cortado fino. Bem cortado, é delicioso. Mal cortado, mata.

m.salles disse...

Muito boa lembrança Gonçalo! Já me tinha esquecido desta delicadeza! o prof até comparou com aquele peixe que se mal cortado pode ser fatal!Subtilidades japonesas!